Espinhos.docx

foto: Canva

Não bateu um sopro frio. Mas quando olhei pro antebraço esquerdo — só o esquerdo — com todos os pelos enrijecendo, senti na lombar o vento gelado. Da linha do punho ao cotovelo, uma enxurrada de fios de uma transparência dourada se pôs em pé e adquiriu a rigidez de haste de plástico, desproporcional para um conjunto de pelos.

Sobrevoo a palma da mão direita acalmando os pelos rebeldes tentando amolecê-los no sono. Mas nem todos se deitam. Ali, três dedos pra baixo do cotovelo, um pelo comprido brilha em 45 graus.

Com o indicador e o polegar, assim que pinço o teimoso, ele endurece como uma agulha. E aí eu puxo. E ele não arrebenta, mas começa a sair do antebraço por ainda uns cinco centímetros, parecendo uma espinha de peixe, um pouco pintada de sangue.

Minha namorada observa a cena e quando ergo o artefato pra ela fazendo careta, ela só responde Credo, que nojo., e vira as costas.

Volto pro meu braço e puxo um segundo pelo-espinha. E depois um terceiro. Um quinto. Um nono. E antes de eu conseguir gritar, meu despertador berra.

O microondas roda a água pro nosso café e na minha cabeça o sonho fica girando numa perturbação matinal. Ela arruma as xícaras, que seriam idênticas se na dela não tivesse esse lasco na borda, no ponto onde equilibra o coador.

Três apitos soam estridentes enquanto conto do sobrevoo da mão direita sobre os pelos insubordinados e quando ela acaba de passar as duas xícaras de café eu chego na parte que puxo o primeiro pelo-espinho. No que ela me responde Credo, que nojo., e me estica o café.

O que cê disse?, minha voz sai gritada e áspera e conto que foi exatamente o que ela falou no sonho. Ela fica puta com o susto que quase gerou uma segunda lasca na xícara. Não dá a mínima pra coincidência das falas e diz que deve ser meu cérebro me trolando, e desaparece pra sua rotina. Basta pra eu mergulhar em dúvida.

Tento lembrar do Credo, que nojo acontecendo no sonho mas a essa altura o sonho já está cada vez mais transparente na cabeça. Mas aí lembro que tá lá, no começo de tudo, no começo do texto, o sonho acontecendo e tá lá o Credo, que nojo. Então sim, ela disse as exatas palavras na vida real.

O cérebro dá um click nervoso e todos os pelos do meu corpo arrepiam, uma espetada no peito quase dobra meus joelhos.

Largo a xícara na bancada. Olho pro meu antebraço que tem os pelos mais loiros e iluminados pelo sol da manhã atravessando a janela. Eles não parecem duros e hesito em encostar. Até que minha mão cai sobre eles, e eles estão lá: finos e macios. Pinço um punhado e arranco. São só pelos.

Saio da cozinha tomando o café e num desequilíbrio incentivado por um tênis perdido no caminho, tropeço e esbarro nos vasinhos de cactos em cima da estante. No meu antebraço esquerdo, uma cobertura de espinhos finíssimos e dourados.

Por Rai Gradowski
04/07/2024 10h08

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