Assombrações.docx

Foto: Canva

Deitada na rede vendo a tempestade se formar, pego o celular pelo simples poder do hábito e sem me dar conta, inicio o ritual de verificações. 

O dedo corre atualizando os três e-mails e apagando zil propagandas do último; abre o whats e acusa a leitura de cinco grupos sem ver; e aí cai na infinitude do Instagram até o cérebro se dar conta da ação automatizada e entediante e eu largar o aparelho. Mas dessa vez eu não largo. Na etapa do Instagram, o que vem não é tédio, é assombração.  

Já há algum tempo, meu celular vem entrando em falência múltipla de funcionalidades, cumulada com uma maldição inata. Anos atrás eu lia um texto com a luminosidade da tela quase no mínimo quando, do nada, o brilho do celular estourou em meus olhos. Sozinho, ele subiu a intensidade da luz lá no teto e me deparei com a volta da tal tela fantasma. 

Como o aparelho já tinha passado por um ritual de exorcismo e troca de tela antes, não me espantei com o bug e só reajustei o brilho ignorando a assombração. 

Depois veio o áudio do viva-voz. Chiado e instável, desconfio que grãos minúsculos de areia foram agarrados pelo alto-falante depois de uma praia e nem jatos de sopro nem palito de dente conseguiram soltar. Mas tudo bem – pra isso que serve fone. 

Como eu seguia ignorando a variação de brilho involuntária, o fantasma resolveu apelar bagunçando o bluetooth. Era só eu ativar pra conectar no fone ou pra abrir a porta de cerveja no mercadinho embaixo do prédio, que o fantasma sacana ia lá e desativava o sistema. De novo, não me deixei vencer e toquei um grande foda-se. Ainda tinha fones com cabo e, bom, melhor dar uma segurada na cervejinha. 

Vendo que eu não cederia fácil, o espírito maligno do aparelho danificou a entrada do carregador de bateria (e também do fone). Num mal contato insuportável, a bateria já zoada só carrega segurando o cabo, nunca mais chegando a 100%. Mas ainda assim, eu batia o pé e insistia em ficar com o aparelho me recusando a uma troca forçada pelo sistema. Até agora. 

O céu rasgado pelos raios grita trovões enquanto me arrumo meio sentada na rede. O fantasma passeia pelo meu Instagram e eu só observo a autonomia assombrosa. A tela roda sozinha pra cima e pra baixo e entra em perfis e começa uma curtição desenfreada. É quando aciona a caixinha de comentários que meu corpo ativa o modo alerta. 

Num pulo, levanto da rede e meu dedo se desespera no arrasta pra cima pra sair do aplicativo. Duas, três, quatro vezes. Ando pela sala com o dedo tremendo pedindo pro fantasma desencarnar do meu Instagram. Cinco, seis, sete. É na oitava arrastada que fecho o aplicativo. 

Não acabo de soltar a bufada de alivio quando o bloco de notas abre sozinho começa a escrever: Me troca, porra!

Por Raisa Gradowski
21/03/2024 16h43

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