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Foto: Canva

Meti o swab na boca e girando a haste cinco vezes pra cada lado esfreguei o interior das bochechas. Enfiei o super cotonete num tubinho e coloquei dentro do envelope preenchido. 

Ela primeiro ficou me observando, criando coragem pra enfrentar o trauma swab-covid, depois imitou o procedimento e me estendeu o cotonete enquanto com a outra mão protegia a boca tossindo num exagero como se expectorasse os resquícios de fumaças guardados há anos nos pulmões de fumante de festinha. Eu guardei a amostra dela no outro tubinho, depois envelope e despachamos nossas células epiteliais para um laboratório na Califórnia. 

Em uma busca de autoconhecimento profundo que me ataca forte de tempos em tempos, depois de reler e grifar todo meu mapa astral, abro o laudo com o resultado do teste genético feito há anos. 

Quando S. veio com a ideia do tal teste eu hesitei. Na hora uma teoria enorme da conspiração se ramificou na minha cabeça, bem previsível pra quem cresceu vendo CSI. Ela rodava a página mostrando os tipos de kit disponíveis e eu só pensava como eu poderia ceder meu DNA assim de bobeira? Vai que roubam o sistema do laboratório e me incriminam do outro lado do mundo? Ou usam meu DNA pra produzir uma fazenda de clones de Rais pra depois vender os órgãos? Não. Jamais. Eu não vou ceder meu DNA. 

– Eu vou fazer esse – ela disse pouco antes de começar o cadastro pra fazer compra. Três segundos depois, caio na real. Tô querendo enganar quem? Desde o Gattaka- Experiência Genética quero saber o que minhas duplas hélices dizem sobre mim. Ah, que se foda. Ela adiciona mais um kit no carrinho e um par de meses depois vem o laudo que agora reconsulto. 

Quarenta e sete páginas indicando alelos e genes e cromossomos e traduzindo esses códigos em informações como: risco reduzido de tendinopatia de Aquiles; níveis plasmáticos de vitamina C padrões; risco diminuído para flacidez palpebral; chance 33% maior de desenvolvimento de miopia; provavelmente não sente alguns tipos de amargo; melhor em força e explosão. 

E aí encontro aquele que não esqueço. Cromossomo 22, gene COMT, alelo rs4680-G: sou geneticamente preocupada.  

As possibilidades são warrior (guerreiro) e worrier (preocupado). No inglês, duas letrinhas que trocadas direcionam extremos traduzidos pelos ATCG do DNA – e eu, cai foi na do surto. 

Consultando o resultado um total de zero novidades, não reajo bem a pressão. Situações estressantes jogam minha dopamina lá no teto e eu meio que congelo (às vezes segue pra um derretimento cerebral talvez num mecanismo inteligente de tentar eliminar o excesso de dopamina pelos ouvidos – mas não funciona). Já em condições normais de temperatura e pressão, geneticamente tenho uma ótima atenção e memória. 

O negócio é que se antes eu mal entendia minha hiper preocupação e ansiedade e nervosismo quando qualquer coisinha sai do plano, hoje eu sei que são meus neurotransmissores que não sabem se controlar.

Então, sorry. A culpa não é minha. Fazer o quê. Tá lá no meu DNA. Portanto, não me estressem. Vou aproveitar meus níveis padrões de sensibilidade aos raios UV e dar uma caminhada tranquila pela rua.

Por Raisa Gradowski
07/03/2024 11h57

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