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Foto: Arquivo Pessoal

Minhas cachorras falam. Entre as quatro paredes do apê cinza salpicado com verde-vivo e outros tons, passam o dia inteiro tagarelando. Ora comigo; ora com Silvi; sempre entre elas. 

E quando digo falam, eu não digo latem. Falam falam mesmo. Sequestram minhas cordas vocais e cada uma em sua escala solta um blablabla de opiniões e vontades, ou só ficam na conversa fiada mesmo mas estão sempre ali emitindo sons através dos olhos. O negócio funciona quando elas me encaram fixo por três ou quatro segundos. Eu mal percebo e meu cérebro já captou a mensagem e ouço a vibração saindo da minha garganta.

 Minhas cachorras falam, e até o feriado passado era só entre quatro paredes. 

Depois que a enxurrada de água que incansavelmente despencava do céu parou, no sábado fez aquele puta sol. Berenice acordou rodopiando entre latidos e língua caída, mas isso não tinha nada a ver com o sol. Era só Berenice em mais um dia. Pucca arrastava os pelos no tapete curtindo a leseira matinal, não que algum momento essa leseira acordasse. Eu sentei pra tomar o café na poltrona do lado da Silvi.  

Ela vendo aquele verão lá fora sugeriu pra levarmos as cachorras passear, cuidando pra não usar a palavra passear (o levarmos eu já sabia seria eu, e logo a conjugação daquele verbo de fato mudou).

Eu sentei pra tomar o café e Bere já veio Mãe, será que daqui a pouco a gente pode dar uma volta?, com a voz de uma criança de cinco anos saindo da minha garganta. 

Antes de eu responder, Pucca deslizando lentamente as palavras por minhas cordas vocais Eu também quero ir. Eu também vou. 

A conversa durou uma caneca de café com leite morno e lá fui eu vestir as coleiras.    

Nas primeiras pisadas na grama, já voltaram só pra linguagem canina: cheirando e latindo pra tudo que é moita. Tava no último pedaço verde antes da porta de vidro do prédio quando uma garota, saindo pra correr ou sei lá, se aproximou. 

As cachorras enlouqueceram do mesmo jeito que enlouquecem quando qualquer humano se aproxima – e mesmo que eu não compreenda a linguagem dos latidos suspeitei de: OI. OI. OLHA A GENTE AQUI. CARINHO. CARINHO. 

A garota também pareceu entender o mesmo e abaixou na altura delas passando a mão na cabeça das duas. Pucca se jogou oferecendo a barriga; Bere soltou o sorriso pela língua; a garota perguntou os nomes. 

Eu também já estava abaixada do lado das três quando aconteceu. Os olhares caninos grudaram nos meus e aquela vozinha tosca da Bere se apresentou, saindo de mim. Em seguida Pucca, de voz mole, finalizou as apresentações com um “tia”. A guria, num sorrisinho educado, levantou sem graça e saiu fora.  

Achei que pegou mal aquele papo tão alto e assim que me vi sozinha com as cachorras, esperando o elevador chegar falei A partir de hoje, a gente só vai conversar EM CASA. Entenderam, crianças?

Antes de eu terminar a frase o elevador abriu a porta. A vizinha mãe de quatro filhos ria. Ainda bem que elas não responderam.  

Por Raisa Gradowski
09/11/2023 13h07

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