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Foto: Canva

O dia amanhece noite em Curitiba. No quarto, nenhuma luz atravessa a persiana fina indicando pro corpo a hora de despertar. Mas às cinco e cinquenta e quatro da manhã meus olhos disparam abertos num susto. 

Um estrondo ecoado. A sinfonia esganiçada de latidos que me impede de ignorar o estrondo ecoado. E entre cacos de vidro no chão da sala, os cabelos fogosos do apelidado Bowie com seu sorriso roxo entre a moldura bordô. 

Não é a primeira vez que um quadro despenca das paredes porosas do apartamento. A cada nova decoração pra estampar a sala, na terceira batida do martelo o prego já enverga e o rejunte em lasca esfarela como se fosse de areia, e cai – imprimindo marcas esburacadas do meu fracasso.

Aí por vezes adotamos as tais fitas – que aguentam zil toneladas. Mas aqui, as paredes quando cansam da decoração, talvez quase num grito de pedido de mudança, repelem a cola e atiram tudo no piso.

No fim, com o impacto da queda os enfeites são quebrados; os quadros danificados; e a volta pras paredes, quando possível, acaba sendo procrastinada. E assim elas decidem o que fica e o que sai.    

A única alternativa para realmente deixar algo estável nessas paredes, é a furadeira. E por mais que, no maior clichê, eu adore brincar de fazer mil furos com o estrondo da furadeira tremendo nas minhas mãos, também o parafuso não ultrapassa uma profundidade rasa, ficando mais exposto do que deveria. 

Como se ao impor à parede aquela estabilidade, ela expusesse as marcas de sua revolta por não conseguir se livrar da fixação. 

As cachorras seguem latindo agora fechadas da porta do corredor pra dentro enquanto eu varro os cacos de vidro do chão ainda antes do café. 

O quadrinho expulso da parede tem por baixo da moldura pedaços de vidro grudados que eu arranco delicadamente para não machucar o papel. 

A cola atrás do quadro ainda gruda quando encosto o dedo e passo a mão na parede tentando não me irritar com aquele desprendimento.  

São sete da manhã quando eu subo na escada com Bowie e furadeira em mãos, sem nem ligar pros vizinhos. 

Por Raisa Gradowski
05/10/2023 16h34

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