Focos e Distrações.docx

Foto: Canva

Dois troncos cortados a meio metro do chão. Algumas vezes pensei em escrever sobre as árvores rompidas no terreno em frente ao meu apê. Primeiro porque é triste pra caramba a fotografia dos dois restos de árvore que pelo diâmetro dos troncos eram bastante grandes e velhas. E segundo, porque eu não lembro delas quando inteiras.

Foi do nada, esses dias bati o olho no terreno vizinho e Credo, e esses dois tocos aí desde quando, se nem nas árvores reparei. Moro por aqui há anos e na certa já vi as árvores bem vivinhas; folhas balançando com rajadas de vento; raios de sol ativando tons coloridos. Mesmo sem notar, sem realmente enxergar, sem nem lembrar, eu sei que vi. 

Tá certo que sou meio desligada, mas parece que quanto mais foco direciono nesse negócio de cumprir tarefas do dia (vulgo sobreviver) mais distraída eu fico com a vida rolando ao meu redor, como árvores existindo e desaparecendo. 

Sei que preciso da agendinha, do planejamento, dos riscos de check pra funcionar. E aqui não digo nem de mil e um compromissos e tarefas e aquele culto à exaustão e ao trabalho, nada disso. Só que sem anotar num papelzinho eu acabo procrastinando ou esquecendo até a rega dos morangos. Então às vezes parece que só fraciono a vida em tarefas e caio no piloto automático onde é cumprir e cumprir e cumprir, sem nem reparar nas coisas acontecendo do lado. 

Pela manhã, obras numa via rápida que sempre pego (e eu sem saco praquele trânsito parado) me fazem optar pela rua paralela. 

A via calma que no outono vira point instagrámavel pelas árvores com folhas do Canadá laranja-ouro – agora têm fileiras de hastes peladas espalhando galhos que mais parecem garras tipo as da floresta da branca de neve, mas ainda assim é abraço que me dão. Os trinta máximos km/hr que posso apertar no acelerador me forçam a observar demoradamente o caminho. A neblina ainda toca o asfalto e nessa hora é claro que uma música bem boa começa no rádio, porque a vida faz dessas: Partido Ato na voz de Cássia. Eu abaixo a janela e subo o volume. Noto três construções já finalizando, uma pessoa com roupa de corrida alongando a panturrilha, um piá guiando um salsicha numa coleira frouxa.  A cada par de quadras: a paradinha na preferencial, vezes por longos segundos. E sigo cantando e batucando no volante com o fluxo de carros cortando minha frente. Pergunto quase em voz alta por que não faço mais esse trajeto bem agradável. Maldita via rápida, mais prática sempre me seduz. 

Quando volto pra casa, sento pra escrever e antes paro e dou uma boa olhada em toda minha volta – e aí vejo. Do outro lado da rua, não existem mais os dois tocos de troncos. Agora na terra um buraco enorme abrindo espaço pra estrutura de um provável prédio. E de novo nem vi acontecer, um trabalho de dias. Talvez deva me forçar a ir por caminhos mais lentos pra não esquecer de reparar na vida. Vou anotar na agenda. 

Por Raisa Gradowski
17/08/2023 15h55

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