Elogio de Fran Lebowitz

Foto: Reprodução/Stockton University

Não sei como, nem por que razão, mas demorei quase 34 anos de minha vida para conhecer Fran Lebowitz. Uma falha moral que, beirando o imperdoável, pude começar a remediar há duas semanas e que, aqui e agora, procurarei sanar de vez, passando adiante a Sua Palavra.

Nesse texto, como ocorreu à maior parte dos Grandes e Pequenos Profetas, pouco hão de importar fatos duros, informações precisas ou dados biográficos rigorosamente verificáveis. Escrevo de memória, e, se ela já é capenga por natureza, tanto menos confiável se tonará a partir do momento em que o leitor perceba que deixei de escrever uma crônica e, com o fervor de um recém-convertido, passei a escrever um evangelho.

Estava eu em um ônibus rumo a Balneário Camboriú, triando podcasts a partir de uma lista que L. havia me indicado, quando encontrei o Wiser Than Me, com Julia Louis-Dreyfus e ela, Fran Lebowitz, de quem tudo o que eu sabia até então se resumia à figura característica e à célebre lesbianidade. 

Contrastando com o tom suave e melódico da entrevistadora, Fran se apresenta com voz rouca, profunda, seca. Chego a me assustar no começo, mas, depois da primeira e inexplicavelmente engraçada piada da entrevista – “Quantos anos você tem?”, “72.”, “E com quantos anos você se sente?”, “82!” –, libero uma gargalhada de tremer meu assento e entendo, de imediato, que acabei de encontrar um par.

Do vasto leque de qualidades humanas, boas ou más, Fran destaca o senso de humor como uma das mais preciosas. Ele é sinal não apenas de refinamento intelectual, mas também de compatibilidade espiritual. O termo é meu, mas entendo perfeitamente o que ela quer dizer: meus melhores amigos são, ao mesmo tempo, as pessoas mais engraçadas e mais inteligentes que conheço (são também, em geral, as mais tristes, mas deixemos isso para uma outra ocasião). 

Ainda sobre o assunto, Fran afirma que senso de humor é algo que se detecta de cara – chega a jurar de pés juntos que é capaz de perceber que um bebê é burro apenas pela forma como ele sorri. Quem me conhece sabe que eu não poderia concordar mais: uma boa parte de nossos traços de personalidade já estão bem ali, na cara.

Fran fuma muitíssimo desde os 12, mas não bebe, nem usa drogas, ao menos não depois de uma temporada entre os 15 e 19 anos, quando, além do álcool, recorreu à anfetamina e à cocaína para se divertir e anestesiar. Vivia passando mal, mas, assim que parou – sem luta ou sacrifício nenhum –, melhorou. Do cigarro, no entanto, nunca nem tentou largar, pois sabe, de antemão, que algumas empreitadas estão fadadas ao insucesso. Seria, ela diz, como escalar o Everest: se a derrota é certa, melhor mesmo é nem tentar. E, nisso, bato palmas para ela – eu, um pessimista resignado (um coach de fracassos) que acha que não há nada mais digno do que aprender a abraçar as próprias limitações.

Fran assume, sem nenhum constrangimento, que vive seus dias a tramar vinganças. Mas e o perdão?, a entrevistadora provoca. Uma invenção religiosa em nada compatível com a natureza humana. Se o ethos judaico-cristão quer nos empurrar a ideia de que o rancor corrói a alma e a mágoa só faz mal, Fran nada contra a corrente de seu tempo: nada lhe dá mais prazer do que fazer justiça com as próprias mãos. Vejam só: justiça, não crueldade, que é a malignidade gratuita. Se alguém lhe faz mal, justo, justíssimo, que se lhe seja retribuído o que plantou. A delícia é arquitetar a vingança e usar de todos os meios disponíveis para a executar, ainda que muito tempo depois. Fran revela ter frêmitos gozosos ao encontrar um babaca que não via há duas décadas e se perguntar: “será que esse cara sabe que nunca entrou naquela sociedade graças a mim?”. Que o outro descubra é supérfluo, o importante mesmo é pagar de volta e na mesma moeda – de preferência, com juros.

Fran festeja a amizade enquanto laço humano mais genuíno que existe. E assim é porque o amor de amigo é o único que deriva de uma escolha, não de uma imposição. Família, ela diz, é uma formidável fábrica de loucos (no sentido fenotípico, comportamental, mas também, em alguns casos – como o meu –, genotípico: a loucura vem de herança nos genes, geração após geração, e aos que vingam só resta lutar contra o determinismo biológico), enquanto ao amor erótico tampouco importa qualquer ato de vontade do sujeito: é fruto de uma cadeia de reações químicas com condão inato de nos levar à glória ou à tragédia (sendo o segundo destino o mais comum).

Fran é reclamona, mas não chorona. Fran traiu todas as namoradas que teve na vida, mas as alertou de sua infidelidade desde o primeiro beijo. Fran é taxativa e diz que quem abre a boca para dizer que escrever é fácil normalmente é um mau escritor. Fran mora em Nova Iorque. Fran é avessa à tecnologia, não usa celular, nem computador, e o último aparato tecnológico que comprou tem mais de 35 anos, uma secretária eletrônica digital.

O podcast termina e, apesar de ter passado por uma loja H. do tamanho de um aeroporto, estou extático. Faltam umas duas horas de viagem, mas, até descer do ônibus de vez, terei rido de chorar, terei desistido de um curso, terei desejado o cigarro charmoso de um fumante na rua, terei planejado vingança contra o estranho que foi grosso comigo no posto e, cheio de amor cômico e implacável, terei comentado sobre tudo isso com meus amigos, meus amigos queridos, com quem atravesso os dias a reclamar, lamentar e gozar da vida. Edificado, passo adiante a Boa Nova: deveríamos, todos nós, ser um pouco mais Fran Lebowitz.

Por Pedro Jucá
29/08/2023 11h08

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