Sol no Peito

Faz sol em pleno inverno curitibano. Nunca me dei muito bem com o calor, mas, depois de alguns anos morando na capital mais fria do País, aprendi a apreciar os raros dias de luz e quentura. 

Que o almoço acontecesse num lugar aberto era, portanto, a única exigência do domingo.

A chegada ao restaurante não é das mais animadoras. Como era de se imaginar, curitibanos e simpatizantes tiveram todos a mesma ideia. As mesas estão lotadas e a fila de espera é de virar a esquina.

Tentamos não nos abalar. Para minimizar o estresse, pedimos drinks e nos sentamos, eu, meu namorado, R. e S., no único banco disponível. Dez, vinte, trinta minutos se passam. A demora me impacienta, o sol se torna excessivo, torra minha nuca, a caixa de som desregulada distorce a voz do cantor – um homem de meia idade, óculos escuros e costeletas características, um nítido cover do Elvis – e, sob o efeito quase alucinatório da fome, as pessoas me irritam, parecem não liberar as mesas de propósito, por puro egoísmo.

Então acontece. 

Reconheço a música já nos primeiros acordes. Me coloco em atenção, endireito a coluna e penso que sorrio. O violão segue em compasso binário e, terminada a estrofe inicial, é impossível não fazer coro ao refrão:

Country roads, take me home

To the place I belong

West Virginia, mountain mama

Take me home, country roads

De imediato, sou levado à recordação de que a primeira vez que escutei essa melodia foi em Sussurros do Coração, um emocionantíssimo filme do Studio Ghibli. Na história repleta de camadas, a mocinha, em percalço com mudanças e decisões, acaba se descobrindo escritora. 

A música segue, enquanto eu e S. cantamos alto. Ela logo me abandona, retorna à conversa, mas eu continuo e vou para longe. Voo, aliás. Respiro fundo, minha voz sai afinada, o diafragma se expande e relaxa, se expande e relaxa. O vento se enfuna em brisa por dentro da minha camisa, faz evaporar o suor da pele, desliza sobre meu rosto como num carinho. O calor me agrada, as pessoas me agradam, me agrada que, docemente intoxicado de Apperol, meu sangue pareça, ele mesmo, laranja e efervescente. 

Olho para o lado, observo meu namorado e me comovo de amor. Paulo se veste com arrojo e segurança, tem um estilo próprio, um estilo que é tão, tão diferente do meu. Traz a barba cheia, por fazer, saldo de mais uma semana dura, e não se importa com isso. Na primeira vez que viajamos juntos, ele entrou no quarto, percebeu que a lâmpada estava defeituosa, pediu ferramentas a R. e fez o reparo necessário. Na hora, no ato, sem titubear. He’s a fixer, eu diria muitas vezes. Um choque para mim, sempre tão acostumado a lidar com máquinas quebradas, disfuncionais. Um choque e um encanto. Essa semana fizemos um ano de namoro, e, consertadas muitas engrenagens, eu não poderia estar mais feliz.

A música termina e a garçonete nos chama, anunciando que nossa mesa ficou pronta. Entrelaço meus dedos à mão direita de Paulo, que os segura em firme reciprocidade. O instante depois acabará – a segunda começará com machucados, retornará meu cansaço crônico, uma crise de ansiedade me roubará o ar, os pequenos e grandes desalentos da vida esgarçarão a beleza dos dias –, mas, enquanto dura o momento, constato, com o sol queimando no peito, que nenhuma estrada precisa me levar a lugar algum: é ali mesmo que estou em casa.

Por Pedro Jucá
15/08/2023 11h00

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