Reprovar no Psicotécnico

Foto: Canva

O homem se encosta sobre o balcão e conversa com a atendente. Entre frases mais ou menos audíveis, seguem num diálogo banal, promessas de temperatura subindo no final de semana, a nova feirinha do bairro, o filme da Barbie. Até que, sem que eu acompanhe como o papo chega no assunto, o homem anuncia em voz alta, sem pudores, para que todos do cartório o escutem: 

— Juro a você! Já reprovei quatro vezes no psicotécnico.

O susto é tão grande que, enquanto aguardo com o papel de senha na mão, quase derrubo o envelope com os documentos que estou ali para protocolar. De olhar esgazeado, com um bigode preocupantemente desgrenhado, o homem repete a fala cheio de orgulhos e salivas, como se bradasse uma grande conquista:

— Isso mesmo! Quatro vezes!

(Será que devo me preocupar? De que tipo de psicotécnico você está falando exatamente, meu senhor?)

Quem me ajuda é a atendente:

— E eu, que já reprovei duas vezes na prova prática? Tudo por causa da baliza…

(Ufa, então é de autoescola que eles estão falando.)

O homem conta vantagem para a atendente e, alisando os bigodes, afirma que, no exame prático, não tinha nem perigo de se bater (ele usa o termo em sentido figurado, querendo indicar que não teria dificuldades em dirigir um carro. Algo me diz que a dimensão literal da expressão lhe escapa. Preciso segurar o riso.). Ele arremata:

— Afinal, eu já dirijo há muitos anos!

Com o sorriso de uma adolescente que acaba de encontrar outro integrante de um mesmo fã-clube, a atendente segura um gritinho:

— Ah, mas eu também!

(Os dois riem em mútuo reconhecimento.)

Confortável por estar entre pares, o homem ganha terreno para narrar sua saga de herói. Explica que, como era nítido que estava sofrendo perseguições pessoais por parte da primeira examinadora (essas provas não têm um gabarito objetivo?), resolveu mudar o local de aplicação do exame. Terminou, na nova sede, de igual maneira reprovado – mais uma injustiça de um sistema cruel, um esquema montado exclusivamente para roubar dinheiro da gente de bem.

(Opa. “Gente de bem”? Volto a me agarrar a meus documentos). 

Consternada com os sofrimentos do novo amigo, a atendente lamenta:

— É… Bem que o Bolsonaro tentou acabar com as autoescolas…

Pronto. Estava demorando. A conversa descamba para a política, mas já nem escuto mais. Por sorte, chamam minha senha. Protocolo meus documentos e vou em boníssima hora do cartório, que, de templo da burocracia, parece ter se transformado em antro de ilegalidade.

Quem me conhece sabe que, a depender do tópico, posso ter uma régua moral bastante elástica. Padeço de um relativismo generalizado que, gosto de acreditar, é menos cinismo do que um tipo de empatia automática, quase involuntária, que dispara sozinha – quando em confronto, rapidamente me coloco no lugar do outro. É um movimento que foge ao meu controle ou escolha e, como quase tudo que se assemelha a uma virtude, é, na verdade, um sintoma de neurose, que, no meu caso, vive às voltas e negociatas com a culpa: será que não sou eu o errado da história?

Será que autoescola é mesmo desnecessário? Será que os melhores motoristas não se formam mesmo é nas ruas? Será que esse é um dos casos em que vale a máxima de Quanto Mais Direito, Menos Justiça? Será que, prescindindo da avaliação, não sairíamos do topo do ranking de países com mais mortes no trânsito? Será que deveríamos liberar a direção a quem bem queira? A quem ache cinto de segurança uma bobagem? A quem dirija bêbado? A quem nem no psicotécnico venha a obter aprovação? 

Já vivi demais para saber que, se o excesso de normas não é a solução universal para todos os nossos brasileiríssimos problemas, muito menos o é a completa falta de regulamentação. Aqui, meu dilema se resolve facinho, facinho: não, não, não e não, para todas as perguntas. Uma, no entanto, embebida em estupefata cólera, restará: por que é tão comum que as pessoas que menos poderiam ter tanta certeza na vida sejam justamente aquelas que primeiro enchem o peito para alardear suas verdades, por mais absurdas que sejam?

(Pergunta bônus: e por que é tão habitual que se encontrem?)

Hoje não serei nem cínico, nem relativista, nem empático: essa gente está, como esteve antes, errada. E, se tudo o que posso fazer contra elas é escrever este texto, eis aqui meu pequeno ato de revolta.

Por Pedro Jucá
01/08/2023 10h38

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