Poder Perder

Foto: Canva

De uns tempos para cá, sem saber o motivo, tenho bocejado muito na academia. 

Se fosse sempre lá pelo fim do treino, a explicação talvez viesse mais fácil: é bateria acabando, é fadiga muscular, é gambiarra do corpo para se manter acordado. O problema é que, cada vez mais comum, basta eu colocar os pés naquele antro de tortura e pronto!, minha mandíbula entra em frenesi e passa a se escancarar de maneira compulsiva. Um, três, seis disparos incontroláveis em questão de minutos. É mais forte do que eu. Já nem me preocupo mais em cobrir os dentes arreganhados ou o rosto contraído em careta. 

No dia em que acontece essa historieta, resolvo perguntar a M., que treina comigo, sobre o porquê de tanto bocejo. Ele tenta elaborar uma resposta, mas o personal do aparelho ao lado, claramente desinteressado no próprio aluno, resolve interromper nossa conversa e nos agraciar com uma explanação cheia de jargões técnicos. A culpa decerto é dos picos de hormônio do crescimento, da insulina, da fisiologia dos mesomorfos. Já tentou shot de taurina? Bocejo outra vez e, para não cair fulminado de sono em plena zona de pesos livres, recorro à minha fuga de preferência: o humor.

Rindo sem expulsar muito o ar dos pulmões (oxigenar o sangue durante o descanso entre as séries é crucial para o sucesso de qualquer marombeiro), lanço a sorte com uma piada:

— Ah, se é assim, é melhor eu ir logo pra casa, né?

M. ri comigo, mas nosso interlocutor se recusa a tomar parte na brincadeira (isso na melhor das hipóteses; na pior, ele sequer terá captado minha ironia):

— A sua competição agradece. 

(Antes de continuar, um disclaimer: acho que esse personal não vai muito com minha cara. Ou, na realidade, nunca me perdoou. É que, no finzinho da pandemia, quando as academias já estavam abertas (mas máscaras ainda eram obrigatórias e ninguém se sentia seguro para nenhum tipo de contato físico), ele veio me saudar com um aperto de mão. Um aperto de mão. Em plena academia. Em contexto pandêmico. Eu recusei, apavorado, mas, por alguma razão, ele resolveu insistir. Balançava a mão no ar e arregalava os olhos, enunciando palavras que, abafadas por três camadas de TNT, nunca cheguei a distinguir. Depois de um tempo, como eu tinha me encolhido para longe, negando veementemente com a cabeça, ele desistiu. Desde então, tem se mostrado obstinadíssimo em seu foco, força e fé de nunca mais se dirigir a mim – ao menos até o dia em questão.)

Por um instante, acho que ele está falando de trabalho:

— Ah, mas nem competição eu tenho, minha área é outra! 

Ele não se dobra:

— Ah, mas tem sim.

Só então atino que ele está falando da minha aparência. A minha competição, no caso, era uma horda hipotética de homens – de gays, inclusive, gays alvoraçados e, com o supino em dia, aptos a, a qualquer momento, surrupiar meu namorado de mim – que, deixasse eu de comparecer um único dia à academia, ganhariam de mim na acirrada disputa pelo corpo (mais) perfeito. 

Finjo não entender o subtexto de seu comentário e tento amarrar a conversa ao trabalho:

— Da minha competição eu ganharia em casa, lendo ou estudando, nem se preocupe…!

É uma tentativa malsucedida. Meu tom de voz esganiçado denuncia que entrei na defensiva. A fala dele me atingiu. É que, se ele estivesse falando de uma disputa profissional ou intelectual, tudo bem, porque nessa seara eu costumo me sentir (um pouco) mais seguro. Minha relação com o espelho, no entanto, é (um muito) mais problemática.

Eu e M. seguimos com o treino e nos afastamos. Dez minutos depois, o personal nos procura de novo. A interação azedou há muito, mas, a essa altura, já ficou claro que ele é daqueles que precisa sempre dar a última palavra:

— Já ouviu falar que, enquanto você dorme, tem alguém se preparando para fazer tudo melhor do que você? 

É demais para mim. Sentindo o sangue subir, resolvo implodir a conversa:

— Tudo bem, deixa eles ganharem, que eu só quero mesmo é dormir.

A isso ele não sabe retrucar. Gagueja um Ah, mas aí também… e não consegue seguir. Eu descobria ali que, para gente obcecada em vencer, enaltecer a derrota é a cartada invencível. Perdendo, ganhei. Vencedor às avessas, aproveito para, em voz alta, de modo a que todos ao redor me ouçam, cantar meus louros:

— Perder é libertador!

Perder é libertador. Perder é libertador. Perder é libertador. Numa era de cansaço extremo, eu só tenho um pedido: pelo amor de deus, me larguem, que eu só quero poder perder em paz.

Por Pedro Jucá
04/07/2023 12h31

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