Do fundo do mar

Foto: Pedro Jucá

É alta noite quando Marisa entra no palco. Veste puros preto e prata – negra cintilância de véus, coroas e mãos, sobretudo mãos, que, com arabescos e volutas, desenham no ar um rastro de poeira cósmica. Retorcem-se quase em dor: invocação de sereia, sortilégio da voz. Caímos todos, arrastados para um fundo de mar.

O menino revira a caixa de CDs da tia. O feminino se imprime: de torso nu, coberto só de um colar de pérolas, a mulher traz os seios em riste.

No contraponto agudo do refrão de Amor I Love You, é permitido que, sem vergonha ou julgamentos, os meninos gritem fino.

No livro didático, Rosa, do Pixinguinha. O estudante lê e relê a letra, até decorar. Sente-se, por isso, superior aos colegas. Em casa, em segredo, canta acompanhando a gravação. 

O melhor aluno da sala entra em um embate sobre a interpretação de O Que Me Importa (que, um dia, ele aprenderá a tocar ao piano). Por mais que, do outro lado, o professor de literatura insista, ele não se dobra a seus argumentos: descobre que, naquele terreno, marcha com segurança.

O rapazote insere o CD no som do carro. É sempre ele a selecionar as músicas que, no caminho até o colégio, todos serão obrigados a escutar. A mãe nunca deixa que a irmã escolha nada. Ela se ressente, ele se aproveita – pela milésima vez: bom dia, comunidade!

Velha Infância estoura na novela. O rapaz repete a música obcecadas vezes, olhos fechados, pensando na menina por quem se crê apaixonado. Nunca concretizará nada: a paixão não é por ela, mas pelo sofrimento do que não se quer realizar.

O rapaz posta no facebook: sorri seus dentes de chumbo. Uma conhecida comenta: que menino sofrido. Ele nunca a perdoará. O masoquismo deseja suportar tudo – menos a ironia.

M. tem o costume de capotar no meio das festinhas. Naquele dia, F. se aproveita da soneca e, de joelhos diante da amiga adormecida, com o violão na mão, canta e toca “e no meio de tanta gente eu encontrei você, entre tanta gente chata, sem nenhuma graça”. M. segue dormindo, alheia à seresta. O efeito cômico é irresistível e estrondoso. O grupo inteiro ri, e só então M. se acorda.

Para brincar na gangorra, dois. Na foto, a melhor amiga abraça o homem por trás, e ambos sorriem. Em pouco mais de um ano, ele terá permanentemente se mudado dali. 

Por amar Segue o Seco, o namorado ganha admiração – e, assim, também alguns meses a mais de um relacionamento que já é mais amizade do que namoro.

O homem retorna ao bar que, quatro anos antes, visitara por ocasião de uma prova de concurso, em uma cidade a dois voos de distância. Na legenda da foto: “linger on”. Para voltar dali para casa, agora bastam alguns quarteirões.

Suspendeu-se toda sensação: não há mais frio, ou cansaço, ou fome, apesar de correrem longas as horas da noite. No fim, Marisa pergunta sobre o que é que a vida fez da nossa vida, mas, bruxa e sibila, some em meio à escuridão abissal. No silêncio que se forma, nada além do eco de minha própria voz.

Por Pedro Jucá
30/05/2023 12h46

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