Adoçantes Artificiais Não Apagam Apartamentos

Foto: Jessica Arends

Quando eu era adolescente, morei um tempo no apartamento de meus avós maternos.

Na realidade, aconteceu duas vezes, em períodos de duração já pouco clara para mim. Ao longo dos anos que se seguiram à separação, mamãe passou por muita dificuldade financeira e, sem emprego fixo, precisou pedir abrigo aos familiares mais próximos. Moramos primeiro com vovô e vovó, depois com meus tios, depois, constatada a muito previsível impossibilidade de manter o aluguel em dia, de novo com meus avós.

Nunca foi exatamente agradável. Dividíamos, eu, minha mãe e minha irmã, o antigo quarto dos sonhos de minha tia, uma suíte rósea que, levando-se em consideração o banheiro, não devia contar com mais do que doze metros quadrados. Uma cama de solteiro, um colchão no chão e uma rede. Um único armário para uma mulher adulta e dois filhos que, sempre muito estudiosos, tinham que se organizar para não brigar pelo espaço na bancada-escrivaninha. Um único vaso sanitário, um único sabonete. Inteirinho cor-de-rosa, o quarto. Inteirinho cor-de-rosa.

Mas não sei por que estou escrevendo sobre o apartamento de meus avós.

Talvez porque, ainda essa semana, mamãe recebeu alta de uma internação hospitalar, mas, ao chegar em casa, piorou muito. E, sempre que isso acontece, sempre que se abre a possibilidade da derrocada definitiva de seu estado de saúde, sempre que, sozinho, me vejo enfrentando problemas que, ao longo da vida, por muito pouco não me aniquilaram de vez, sou como que enfurnado de volta dentro do quarto cor-de-rosa, lutando, com vacilante sucesso, contra toda aquela proximidade forçada, invasiva, insuportável.

Talvez porque, ainda essa semana, eu tenha enviado o Coisa Amor de presente para a Marisa Orth. Além da dedicatória, eu lhe escrevi um bilhete curto e, agora reconheço, melodramático demais. Nele eu agradecia pelas muitas ocasiões em que assisti ao Saia Justa ao lado de minha avó. Morar naquele apartamento nunca foi exatamente agradável, mas tinha suas belezas.

Sentávamos juntos no sofá da sala e vovó aparecia com delícias retiradas direto do frigobar de seu quarto: Pringles e Coca Diet, iguarias que, na minha cabeça, eram mais bem guardadas que o dinheiro de um cofre. Pedriiiiimm, ela prolongava meu nome, imitando o barulho de um telefone, e me perguntava se eu queria provar dos comes e bebes. De primeiro, eu negava, mas, conforme fui adquirindo mais intimidade – com os Oliveira sempre se precisou de muitos dedos –, passei a aceitar. A Pringles tinha justificativa óbvia, fritura e sal são uma combinação irresistível, mas a Coca Diet (que, como se sabe, tem gosto de Coca Diet), eu acho que só desejava porque, nas mãos de vovó, a bebida se tornava chic. Vovó era chic. Deu aulas de etiqueta, escreveu livros de boas maneiras e bebeu muita, muita Coca Diet de canudinho. 

Munidos das delicatéssen, assistíamos às quatro apresentadoras do programa debatendo sobre arte, política, economia e sexualidade, tudo com uma franqueza que, nos dias de hoje, já não seria tão bem aceita. Mônica, que vovó chamava de Mônica Vai de Volks, era a temperada; Fernanda, a sincerona provocativa; Rita podia tudo, de executar limpezas espirituais com cristais a mostrar a bunda; e Marisa era a inteligente.

Marisa era a inteligente, o que, tendo em vista Magda, sua célebre e mentecapta personagem, parecia um contrassenso. Marisa era a inteligente e, por força de uma dessas conexões estranhas que cérebros costumam fazer, me lembrava a mamãe, ambas donas de um rosto de beleza peculiar, de um corpo bonito e de um talento extraordinário para a comédia. Mamãe teria sido uma ótima atriz profissional. Interpretou uma suicida numa montagem espírita – que piada de mau gosto – e sempre atuou em seus festivais de dança, que mesclavam coreografia e teatro. Mas nunca passou disso. Se tivesse insistido, que diferentes caminhos teria podido trilhar?

Não sei por que estou escrevendo este texto, mas, olha só, voltei de novo à mamãe.  

Faz algum tempo que ela tornou a morar com meus avós, com quem não converso há dez anos ou mais. Nesse ínterim, Rita se foi, Fernanda se foi, a Coca Diet se foi (substituída por uma versão com menos aspartame, adoçante artificial que, dizem, causa Alzheimer). Vovó está tão bem quanto possa estar bem uma pessoa que não se lembra nem do próprio nome, não se lembra de comer, não se lembra de ir ao banheiro. Mamãe está se recuperando, acho que foi só um susto – ainda não foi dessa vez. O apartamento e o quarto cor-de-rosa continuam lá.

Por Pedro Jucá
18/07/2023 12h11

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