Eu me lembro que, quando criança, meu pai, tios e alguns amigos sempre se reuniam lá em casa pra fazer um som. Meu pai, seu violão inseparável e algumas caixas de som – que naquela época e para minha idade e tamanho – pareciam enormes. Eu e meus primos correndo e brincando pelo quintal, enquanto eles cantarolavam Raul Seixas, Zé Ramalho, Elis…tempo bom!
Meu pai toca de tudo um pouco, diz ele que aprendeu sozinho. Minha meia-irmã, foi na mesma linha. Ela aprendeu muito com ele, ou talvez porque tenha tido sempre ele por perto, sei lá, vai saber.
Já eu, por minha vez, toco um total de zero instrumentos. Acho que não tenho aptidão, coordenação motora, empenho, ou simplesmente, dado esse contexto familiar, Freud explica (risos!).
Apesar de não tocar nada, sempre fui apaixonada por música. Minha vida todinha tem trilha sonora: música de trabalho, para elevar astral, curtir a bad, pra chorar, pra sorrir, e tenho quase certeza de que vocês também têm.
O que falta de habilidade técnica, me sobra de atenção às letras. Pra mim, a música é uma forma de manifestação artística que vai muito além da fruição estética, ou de apenas colorir e preencher as nossas vidas com trilhas sonoras individuais. Ela também pode nos permitir uma tomada de consciência social, de classe e porque não dizer, racial.
Perpassada por momentos e cenários históricos, a música revela aspectos culturais e sociais que se fazem presentes desde a seleção de arranjos, melodias e instrumentos. A seleção de todos estes pontos, técnicos ou não, não se dão de forma simplesmente sistemática e aleatória, mas variam muito de acordo com o sujeito, o meio que ela tá inserido, e suas experiências individuais e sociais.
Katharina Doring, graduada em música pela UFBA e doutora em educação com ênfase em Arte-Educação pela Universidade de Siegen, na Alemanha, desenvolveu um projeto de pesquisa cujo objetivo era investigar as narrativas subjetivas de memórias musicais, partindo do sujeito como ‘lugar empírico’ nos processos de produção, onde os alunos do curso, enquanto educadores musicais, eram convidados e refletir sobre o processo de aprendizado e motivação musicais que os trouxeram até ali.
Para Doring, a música entendida como uma perspectiva socioantropológica, seja para professores ou apenas consumidores e/ou apreciadores musicais, evoca a construção de um ‘ser musical’, onde ambos nascem de uma mesma fonte: “a música começa na pessoa”.
O projeto é extremamente sensível, rico e interessante, e reforça a ideia de que, se analisamos música em conjunto com outras áreas de conhecimento como a psicologia, antropologia, pedagogia, sociologia, história entre outros, temos uma potente ferramenta à serviço da educação popular. E o que isso tudo tem a ver com o propósito aqui da Sankofa? Explico: foi através da literatura que cheguei às produções escritas de/por pessoas negras e a literatura afro-brasileira. Não demorou muito, cheguei à Conceição Evaristo, e o conceito de Escrevivência.
O termo Escrevivência nasce do jogo de palavras entre escrever, viver, escrever vendo-se. Segundo Evaristo, “a Escrevivência surge de uma prática literária cuja autoria é negra, feminina e pobre. Em que o agente, o sujeito da ação, assume o seu fazer, o seu pensamento, a sua reflexão, não somente como um exercício isolado, mas atravessado por uma coletividade”.
Em entrevista recente, Evaristo fala sobre a sua produção, e de como ela [a Escrevivência] é profundamente ligada às experiências da coletividade negra, e que muito embora essas experiências sejam usadas como ‘pano de fundo’ em diversas produções ficcionais, quando ela passa a ser narrada por pessoas negras em diáspora, contando sobre suas culturas, sua ancestralidade, transformando-as em textos – ou em música – o peso é outro.
Em linhas gerais, essas narrativas podem ser usadas como pano de fundo em diversas produções, mas não como narrativa escrita por pessoas negras. Daí surgem as dificuldades inerentes a esse tipo de produção artística, – seu conhecimento, reconhecimento, financiamento e espaço nas grandes mídias e/ou editoriais – seja ela na literatura, em artes cênicas de modo geral, e na música.
Tendo em vista que o impacto histórico-social do sequestro em massa e do tráfico transatlântico podem ser observados em diferentes espaços geográficos, e que as experiências dessa coletividade ultrapassam territórios, as características das vivências, bem como as suas consequências sociais, não estão apenas no cenário nacional, mas em diversos outros, tendo suas formas, demonstrações e pautas específicas, complexas e atemporais.
Nina Simone, ao compor “Mississippi Goddam”, faz menção a três estados: “Alabama’s gotten me so upset/Tennessee made me lose my rest/And everybody knows about Mississippi goddam (O Alabama me deixou tão chateada/O Tennessee me fez perder o sossego/E todo mundo sabe sobre o Mississippi, que droga!)”. E o que Alabama, Mississippi e Tennesse têm em comum? Localizados no coração do Sul dos EUA, ambos sofreram com atentados por parte de supremacistas brancos.
Em 1957, No Tennesse, a escola Hattie Cotton Elementary School, sofreu um atentado motivado pela presença de crianças negras matriculadas ali. No ano de 1963, na esquina da 16th street com a 6th avenue, um atentado a bomba em Birmingham, Alabama, deixou quatro crianças mortas de forma instantânea em decorrência da explosão.
No mesmo ano, no Mississipi, o alvo foi Medgar Evers, secretário da NAACP (National Association for the Advancement of Colored People), que foi vítima de um ataque racista com coquetel molotov, na garagem de sua própria casa.
No verso “they try to say it’s a communist plot (eles tentam dizer que é uma conspiração comunista)”, Nina traz à tona a tentativa de descolamento do tema central – os direitos civis – na intenção de diminuir a importância e força do movimento com o “bicho papão” do comunismo. O modus operandi te parece familiar e atual? Pois é!
No cenário nacional, a canção “A carne” é exemplo de representação do ‘lugar empírico’ desses indivíduos. Na música temos expressa uma narrativa de memória construídas a partir de uma coletividade atravessada não apenas por experiências pessoais, mas também por um meio sociocultural de um Estado estruturalmente racista, violento e cruel.
Composta por Seu Jorge, Wilson Capellette e Marcelo Yuca, e imortalizada na potente voz de Elza Soares, a letra tornou-se um hino de resistência. Versos como “A carne mais barata do mercado é a carne negra/Que vai de graça pro presídio/E para debaixo do plástico/Que vai de graça pro subemprego/Que fez e faz história/Segurando esse país no braço”, enaltecem as contribuições históricas da população negra no país, sem deixar de lado a denúncia da segregação, injustiças, a violência policial e o desrespeito presentes na nossa sociedade.
Ainda na voz de Elza Soares, temos em “Maria da Vila Matilde” os versos “Cadê meu celular?/ Eu vou ligar pro 180/ (…) Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”, trazem à tona a violência de raça e gênero, tema que percorre todo o álbum “A Mulher do Fim do Mundo”.
O mesmo tom vem na voz de Bia Ferreira, em “Cota não é esmola”. Em frases fortes e objetivas, Bia diz que “Existe muita coisa que não te disseram na escola/Cota não é esmola/Cansada de esmolas e sem o dim da faculdade/Experimenta nascer preto, pobre na comunidade/Cê vai ver como são diferentes as oportunidades.
A narrativa descreve o cotidiano de jovens negras e periféricas buscando o seu lugar no mundo, além de ressaltar a importância de políticas afirmativas que visam contribuir com a democratização dos espaços acadêmicos, como a Lei nº 12.711, a Lei de Cotas, que abre possibilidades e horizontes de novas perspectivas para mulheres e homens negros.
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Em “Olhos coloridos”, escrita pelo compositor Macau, mas conhecida e eternizada pela voz de Sandra de Sá, o tema central nasce da mesma origem: o racismo, aqui, com àquele adicional de violência policial, que foram vivenciados pelo próprio Macau.
Segundo Macau, “Olhos Coloridos surgiu de uma repressão policial que sofri em um evento escolar realizado pelo Exército, no Estádio de Remo da Lagoa. Fui chamado de “nego abusado”, agredido com palavras e força física, zombaram da minha cor, da minha pele, do meu cabelo e de minha roupa, riram até do meu sorriso”. A abordagem aqui também não é novidade, convenhamos.
Partindo dos conceitos de Escrevivência e das análises centradas no ‘lugar empírico’ do sujeito e expressos por uma coletividade de indivíduos, temos produções que trazem para o cenário musical não apenas denúncias, mas também a exaltação de uma série de referências ancestrais baseadas em religiões de matriz africanas como o candomblé e a umbanda.
Ascensão, único álbum da carreira de Serena Assumpção, foi tarefa revelada em jogos de búzios no Ile De Oba De Dessemi. Toda a atmosfera da produção foi imersa em referência simbólicas e espirituais.
Da abertura com “Exu” até o encerramento com a faixa “Do Tata Nzambi”, além da experiência espiritual e transcendente dos sons e letras de Assumpção, o projeto é um grito político e de resistência pela liberdade religiosa, a sobrevivência da arte, o reconhecimento dos povos originários brasileiros, é todo amor e ternura, mas também é justiça. Tudo extremamente sensível e perceptível. É, de fato, um trabalho de conexão espiritual!
Nessa mesma linha temos Iara Rennó, que recentemente lançou um trabalho incrível, chamado Oríkì. Indicado ao Grammy Latino, fortemente influenciado pela cultura mítica e sonora dos orixás, traz, em uma das faixas do álbum, a canção “Bàbá Orí”, que, com a participação da cantora e artista Thalma de Freitas, traz uma saudação a Oxalá.
Rennó já teve suas letras, melodia ou ambos interpretadas por artistas como Elza soares, Ney Mato Grosso, Gabi Amarantos, Curumin e Lia de Itamaracá. Se você ainda não conhece, super recomendo!
Neste cenário também temos Juçara Marçal na voz da banda Metá Metá. O grupo compôs a trilha sonora do espetáculo Gira, projeto coreografado pelos irmãos Paulo e Rodrigo Pederneiras para o Grupo Corpo.
A banda foi responsável por traduzir batidas, ruídos e vozes ao orixá senhor do princípio e da transformação, Exu. Neste trabalho foram agrupados fragmentos de uma desconstrução do jazz clássico e ambientações típicas da cultura e sonoridade africanas. É forte, intenso, e lindo demais!
Uns nomes mais e outros (talvez!) menos conhecidos, esses são apenas alguns dos inúmeros exemplos de produções nacionais que visam desconstruir um cenário de intolerância e racismo religioso, bem como a tentativa de apagamento da contribuição cultural africana e indígena, extremamente importantes, ricas e presentes no nosso cotidiano, expressadas aqui por meio de produções musicais, que bebem em fontes históricas, sociais e ancestrais, indispensáveis na produção do capital cultural brasileiro.
O que eu não sabia lá na minha infância, mas aprendi ao longo do meu caminho primeiramente como assídua consumidora musical, depois como curiosa, e por fim como pesquisadora, é que a música pode ter um papel fundamental e importante na produção de conhecimento e de educação popular.
A música me levou pra uma série de lugares, me fez transitar por uma série de momentos históricos, me fez conhecer realidades iguais e outras profundamente diferentes das minhas enquanto sujeito inserida numa determinada realidade social, mudando a minha forma de ver o mundo, de me reconhecer nele, mas principalmente na minha visão do outro, e da forma como ele vê o mundo a partir de suas experiências e individualidades.
E aí, você já conhecia esses nomes? Não? Pois muito que bem! Imagine um espaço onde pudéssemos ouvir e trocar referências nesse sentido, exaltando grandes nomes da música da velha e da nova MPB, além de (por que não?!) outros nomes internacionais, mas que ocupam esse mesmo papel na construção cultural de seus países?
Pensando nisso, criamos uma playlist colaborativa no Spotify onde os nomes citados aqui e outros estão presentes!
Vem comigo, vem!
Axé =)
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