Leve dois pague um – as conquistas dos direitos das mulheres nunca estiveram em promoção

“Não serei livre enquanto alguma mulher for prisioneira,
mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas”

Audre Lorde

No último mês, em meio as centenas de promoções de cosméticos, eletrodomésticos e utensílios para o lar, tivemos mais um 8 de março. Nada contra nenhum tipo de promoção, eu, inclusive, gosto. Mas não podemos nos esquecer e esvaziar o verdadeiro significado dessa data tão importante para a conquista dos direitos das mulheres e que deve(ria) nos remeter a LUTA.

As conquistas históricas pelo direito das mulheres e o marco do 8 de março são reflexos da luta das mulheres e não pode ser desvinculada do seu propósito político. Conquistas que foram fundamentais para ocuparmos os espaços que hoje ocupamos, e que abriram portas para a instituição de direitos como a alteração do código eleitoral, consolidação das leis trabalhistas, o Estatuto da mulher casada, lei do divórcio, entre outras tantas.

Foto: Wilcker Moraisdiposível.

Em entrevista ao Brasil de Fato, a historiadora Diana Assunção, integrante do coletivo feminista Pão e Rosas, afirma que “a história real do 8 de março é totalmente marcada pela história da luta socialista das mulheres, que não desvincula a batalha pelos direitos mais elementares — que, naquele momento, era o voto feminino — da batalha contra o patriarcado e o sistema capitalista”

No entanto, todos os anos vemos a tentativa de esvaziamento do conteúdo político e histórico da data, deixando nas camadas superiores o simbolismo atrelado à uma ideia simplista que consiste em ‘parabéns pelo seu dia! Toma aqui chocolates e flores, mas amanhã voltamos com a programação normal, TÁ OK?’ O panem et circenses tá diferente, né?

Esse dia é um dia de homenagem à mãe, às filhas. É um dia de homenagem à mulher. À mulher no seu sentido mais profundo, da sua individualidade, da sua intimidade. À mulher que tem o prazer de escolher a cor da unha que vai pintar. À mulher que tem o prazer de escolher o sapato que vai calçar. Pouco me importa que tipo de escolha ela faça, porque essas maravilhosas mulheres que integram as nossas vidas e as nossas instituições são tão dedicadas a todas as causas em que se envolvem“, afirmou Aras em reportagem para o G1.

Ah, e claro! Não vamos nos esquecer da conquista e do PRAZER que sentimos em escolher o sapato, a cor da unha, a nossa dedicação inata, e, obviamente, o nosso dom – quase obrigatório! – de multiplicar, né? Muito obrigada pela “HOMEnagem”, PGR! Lacrou, só que ao contrário.

8M e o movimento feminista

Outro ponto importantíssimo destacar é que, quando falamos na luta pela conquista por direitos das mulheres, é válido pensarmos: direitos para quais mulheres? O movimento sufragista tinha como principal pauta o fim do confinamento doméstico e o direito ao voto feminino. No Brasil, a conquista do voto se deu em 1932 e era facultativo. Para ter o direito ao voto, as mulheres deveriam ser casadas e obter a autorização do marido. As solteiras e viúvas só tinham o direito assegurado se tivessem renda própria. Ou seja: conquistamos, pero no mucho. Nesse contexto, por si só, a conquista do direito ao voto feminino já não contemplava todas as mulheres, mas adivinhem para quem, em efeitos práticos, ela já nasceu excludente? Isso mesmo, para as mulheres negras. Esse é apenas um exemplo das diferenças e dos recortes necessários quando nós mulheres falamos em luta e conquista por direitos: a nossa corrida não é e está longe de ser igual!

Dear White People – Bate papo interseccional

Essa semana eu tive o imenso prazer de participar de um evento promovido pela Construtora Pride e organizado por Fabiane Rubino, diretora do RH. Uma roda de conversa entre mulheres incríveis, mediado pela Tatiana Quadros, advogada e mestre em direitos Humanos e Políticas. Aqui, gostaria de trazer um breve resumo de uma das falas: “Enquanto as mulheres brancas queriam o direito de ocupar o mercado de trabalho nós, mulheres negras, já trabalhávamos até a exaustão, e as nossas e nossas avós tiveram o mesmo destino antes de nós. Logo, o feminismo branco não me contempla! As minhas ancestrais cuidavam dos filhos mulheres brancas para elas pudessem ocupar espaços que a nós eram — seguem sendo — negados”.

Essas foram algumas das provocações e reflexões trazidas por Amanda Gonçalves. Amada é Cozinheira Social formada pelo Centro Europeu, candomblecista, Defensora Popular, e idealizadora do projeto Tabuleiro. O Projeto visa a formação em panificação e autogestão econômica para mulheres negras, onde toda a venda da produção é revertida para o próprio projeto. Em conversa como jornal Plural, Amanda explica que “o Tabuleiro tem todas as diretrizes do candomblé, uma religião matriarcal que ajuda a nos percebermos como mulheres, antes de sermos feministas. As mulheres periféricas não são contempladas pela luta e realidade das mulheres feministas.” Toda a venda da produção é revertida para o próprio projeto.

Mercado de trabalho e polução carcerária

O Boletim das Mulheres Negras no Mercado de Trabalho apresenta análise e indicadores do 1° trimestre de 2021, os principais destacados são:

• As mulheres negras foram a maioria na desocupação, na subocupação e na subutilização da força de trabalho ampliada, mostrando que a sua inserção no mercado de trabalho foi mais precária do que a dos demais grupos considerados (homens negros e mulheres e homens brancos).

• O trabalho doméstico mostra-se tipicamente feminino e negro. As mulheres representaram 93,2% do trabalho doméstico sem carteira, sendo 61,6% mulheres negras.

• A remuneração das mulheres negras foi sempre inferior à dos demais grupos, mesmo com o aumento da escolaridade ou do cargo ocupado. A única situação na qual as mulheres negras auferiram rendas superiores às dos homens negros foi nas forças armadas.

O cenário é de extrema desigualdade e vulnerabilidade, sendo imperioso que políticas públicas sejam ativadas para minimizar e superar a situação precária em que a maior parte das mulheres negras vive no mercado de trabalho.

Dados obtidos pelo ITTC – Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (2017) e disponibilizados pela Pastoral carcerária, não apenas reforçam, mas demostram estatisticamente o reflexo histórico do racismo estrutural.

No que diz respeito a escolaridade, a maioria das mulheres (67,4%) cujos dados tivemos acesso, não chegou a cursar o ensino médio, tendo 55,2% ensino fundamental completo e 12,2% ensino fundamental incompleto, o que demonstra que o sistema seleciona um perfil de mulheres com baixa escolaridade e difícil acesso aos serviços educacionais.

Imagem: ITTC Mulheres em Prisão.

Mulheres negras representam cerca de 53% da população carcerária, inter-relacionando mercado de trabalho, escolaridade e cárcere. Se analisados de forma conjunta, esses dados demonstram as heranças de uma sociedade escravocrata, a falta de amparo do Estado no período de pós a abolição, e exemplifica a forma como a população negra – mulheres, em especial – são vítimas do racismo estrutural e os principais reflexos dessa estrutura ao longo da história das vidas dessas mulheres.

Esses são alguns dos motivos pelos quais precisamos falar sobre interseccionalidade entre gênero, raça e classe, precisamos debater sobre importância da criação e manutenção de políticas públicas claras e objetivas que amparem essas mulheres, lutar pelo acesso à educação e formação profissional e a permanente luta pela garantia dos direitos já adquiridos sejam aplicados a essas mulheres. A nossa luta precisa ser coletiva, mas antes de tudo, ser antirracista.

Por Kessianne Mendes
30/03/2022 15h31

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