Um Estojo com Sangue.docx

Foto: Raisa Gradowski

Mexendo na segunda gaveta da mesa de cabeceira do meu antigo quarto na casa dos meus pais – que sim, eu já deveria ter dado um destino praquela tralha toda faz aí uns seis anos, mas usando de minha condição de canceriana tenho autorização astrológica pro apego – foi que encontrei o estojo. 

Coço o nariz com a palma das mãos e fecho a gaveta antes que o cheiro do passado me sufoque de alergia. Sentada no chão encostada na cama, abro o estojo e espalho todo o material. Três pinças diferentes, uma tesoura com finos pelos brancos grudados, um bisturi, algumas agulhas e seringas, um tubo de gavagem e outro de infusão improvisado e duas caixas de fio dental (uma da Bayer) pra dar os pontos na cabeça dos ratos.  

Pego o bisturi e vejo na lâmina cega o cobre da ferrugem e o marrom escuro do sangue seco e instantaneamente o estômago embrulha e a garganta trava e preciso me segurar pra não cuspir pra fora em forma líquida.

Está certo que desde esses tempos – que bate aí uma década e agora começo a entender minha mecha branca – eu já não era muito fã de sangue. Pra mim, ainda no primeiro semestre da facul de farmácia foi muito mais fácil abaixar a calça e tomar uma intramuscular na bunda de qualquer caloura (ufa) do que dar o braço pra cutucarem minha veia. No último semestre, subornei meu responsável no estágio de análises clínicas com uma coxinha e uma Coca pra não passar pela etapa tirar sangue dos pacientes. Mas agora, só o pensar no sangue e em coisas abertas e rasgadas preciso fechar os olhos e desfocar pra ânsia não amargar na boca. 

Quando preciso fazer exame, já chego no laboratório pedindo com um sorriso e uma piscadela simpática pra tirar os mil tubos deitada. O ponto é que ver (ainda que de viés por três segundos naquela viradinha de cabeça quando troca o tubo) aquele sangue saindo da veia com a agulha enterrada no braço sinto como se tivesse me esvaziando e aí, eu tombo. Então imploro pela salinha do ScoobyDoo e deitada viro pra parede e me distraio com os desenhos estampados enquanto o cateter faz imóvel seu trabalho.

Ainda com o estojo na mão, me vem que aquilo tudo provável esteja contaminado e que devia ter dado o destino do lixão tóxico há tempos. Mas eu não consigo. Olho pra todo material que parece refletir nos metais uma outra vida de um outro eu e guardo tudo dentro do estojo. Enfio dentro da gaveta e bato a porta do meu antigo quarto. Sigo com minha autorização astrológica pro apego. 

Por Raisa Gradowski
16/02/2023 18h24

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