Semana Santa (saber descansar)

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Há séculos e séculos, depois de uns três anos pregando o amor, o perdão, o respeito ao próximo e a compaixão – valores proscritos hoje, é verdade, mas ainda mais absurdos à época, tanto que até uma crucifixão lhe renderam –, Jesus, o chamado Cristo, foi morto, sepultado e, para os que creem, ao terceiro dia ressuscitado, tudo na missão de remir pecados, estabelecer uma conexão direta com o Cara Lá de Cima, pagar o preço da vida eterna e, de quebra, no que alguns fãs alegam, aí sim, ser o verdadeiro milagre, garantir mais um feriado prolongado no Brasil.

Séculos e séculos depois, perdido em outro país, outro continente, outro hemisfério, na sala de um pequeno apartamento alugado, vestindo moletom, shorts e meias, um outro homem, também de 33 anos e origem judaica, rói as unhas enquanto alterna o olhar entre o celular e a televisão. Ele está nervoso porque, sem conseguir se entregar de corpo e alma nem a um, nem à outra, se entala no meio da passagem, purgatório entre as delícias da preguiça ferial e os tormentos da diligência. É que, embora queira descansar – a tela maior o seduz com séries, videogames e promessas dignas da Tentação no Deserto –, sente que faria bem em adiantar as tarefas da semana, esse interminável período de provações que, listado na tela menor, um dia talvez lhe renda um lugar aos céus (ou, ao menos, uma aposentadoria digna antes dos 85).

No bloco de notas do celular aberto em sua mão, ou melhor, em minha mão, que a essa altura todos já sabemos quem é o protagonista da história, lê-se (glosas não constantes do original): 

  • Caminhar no parque (sempre me arrependo, mas, dizem, um pouco de ar puro faz bem – e, a quem estou querendo enganar?, as calorias daquele ovo de chocolate não vão se queimar sozinhas);
  • Fazer o Imposto de Renda (hora em que mesmo o mais ferrenho defensor do Estado de bem-estar social vira um liberal selvagem. No entanto, não há muito o que fazer: ai de quem não der a César o que é de César – a esse a malha fina reservará castigos que nem o Império Romano conheceu);
  • Embalar, para posterior envio, exemplares do Coisa Amor, meu livro de contos (Jesus atacou os mercadores no templo, entretanto acho que ele saberá perdoar as #publis sorrateiras de um escritor independente);
  • Adiantar a crônica da semana que vem (outrora semanal, a coluna passou a ser quinzenal por escolha minha, na expectativa de aliviar os pesados fardos de escritor. Apesar disso, é incrível: quem diria que os tais quinze dias se passam em exatos… quinze dias?);
  • Estudar italiano (nem comédia, nem divina: não, a língua de Dante – e de Elena Ferrante – não se aprende por osmose).

Entre o celular e a televisão, anjinho e diabinho brigam sobre meus ombros. Adoraria ser produtivo, mas já é o terceiro dia esparramado sobre o sofá e minha disposição não dá o menor sinal de querer ressuscitar. Se considero sacudir a poeira e arregaçar as mangas para ticar item a item da lista, sinto uma revolta imensa – poxa, nem em pleno Domingo de Páscoa eu tenho o direito de descansar? Por outro lado, se penso em largar mão de tudo e aceitar que há tempo para cada coisa debaixo do sol, inclusive passar 20 horas jogando Pokémon e me alimentando de delivery, sinto uma culpa cristã terrível – se bem que, nesse caso, a fonte da culpa deva ser outra (capitalismo tem profeta?).

Por que não conseguimos mais descansar em paz? Desde quando repousar passou a ser um pecado mortal? Por que nos sentimos tão inúteis se nos permitimos fazer uma pausa, por mínima que seja? 

Um amigo me conforta: “lazer não precisa ser útil, seja feliz”. Ele tem razão, e, em nível racional, eu sei disso. O difícil é introjetar a máxima no corpo, na alma, no espírito. Percebam como é ardilosa a neurose de nossa era: se só valemos o que produzimos, deixamos de valer qualquer coisa quando não produzimos nada. O lazer é e deveria ser, por natureza e sanidade, inútil. Será que nos apegamos tanto à cruz diária que, se nos recusamos a carregá-la, ainda que por tão pouco tempo, sentimos que abdicamos de qualquer tipo de salvação pessoal?

A solução é salomônica. Depois de árduas negociações comigo mesmo, decido cumprir a tarefa que, da lista inteira, se situa mais próximo de um momento de lazer: caminhar no parque. Me levanto do sofá implorando clemência, lavo o rosto, desdespenteio o cabelo – pentear não foi exatamente o que eu fiz –, visto a roupa de academia e calço os tênis de corrida, que, coitados, nunca serviram a corrida nenhuma e nem por isso eu os tomo por inúteis (sou mais brando com meus calçados do que comigo).

Fones no ouvido, saio do prédio e respiro fundo para aspirar o ar puro de uma Curitiba vazia de carros e de poluição. Na primeira esquina, tropeço e quase torço o pé. No mundo tereis aflições, disse o aniversariante (ou quase) do dia, mas ele também ordenou que tivéssemos bom ânimo, porque ele havia vencido o mundo. Então eu continuei. Temperatura amena, sol agradável, árvores verdejantes. Apesar de todos os lírios no campo, minhas coxas começam a coçar. Tenho isso desde sempre, não sei explicar o que é, no entanto sei que se aproxima da sensação de uma dor isquêmica. Me concentro na rua, forço meditação, pratico negacionismo – é só negar que o incômodo existe e, voilà, adeus, problema. Eu que não ia me dobrar tão fácil.

Dentro do parque, me convenço de que o esforço valeu a pena. Em verdade, em verdade, me digo: que lindas aquelas duas capivaras avistadas a um quilômetro de distância! Que deleite assistir às pessoas correndo do ataque dos gansos! Quase atropelado por uma bicicleta? Que mal faz?, olhem esse lindo lago turvo a refletir o céu mais cinza que já vi!

Eu tento, tento bastante. Quando minhas mãos começam a coçar e, já tarde demais, eu me dou conta de que estava sendo devorado por mosquitos borrachudos – um deles realizou a proeza de me picar no diminuto espaço entre o anelar e o mindinho –, aceito que é melhor desistir. No caminho de volta para casa, a lição dos céus vem soprada ao vento: bem-aventurados os que se permitem ser completamente inúteis no santo dia de lazer, pois deles será a verdadeira felicidade.

Por Pedro Jucá
18/04/2023 11h41

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