Cuidar de um Gato (Com um Rim a Menos)

Foto: Freepik

A Willow, ainda (mas também a Hopper e Nimbus, que ficaram com ciúmes).

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Foto: Pedro Jucá

A cirurgia de Willow foi um sucesso, me informa o cirurgião.

Uma descarga elétrica percorre cada fibra muscular do meu corpo enquanto o médico me explica que correu tudo bem na extração. Extração, doutor? Sim, como o ureter de um gato é fino demais para ser costurado, só houve um caminho: a retirada do rim defeituoso. Nefrectomia, no jargão técnico. Apesar disso, o risco de morte continua alto – ele faz a ressalva, mas quase não me convence. É que se reporta a mim com humanidade, e isso basta para que, por ora, todas as tensões se dissolvam e, pesado, pesado, eu afunde no colchão que, debaixo de mim, me engole com a textura de algodão doce.

(A manhã se ergue intranquila e, renovadas, as angústias se juntam a um dilema. Será que mando notícias para o ex? Consulto amigas, e uma delas me revela o óbvio: eu sabia, de antemão, o que precisava fazer. O áudio que envio é bastante bem ensaiado. Com voz suave, sugiro que ele visite Willow o mais rápido possível. É menos um convite que um alerta: vá, porque pode ser a última vez que vocês se veem.)

Willow está estável e se recupera bem. Entretanto, como os índices renais estão bastante alterados, segue enjoada e se recusa a comer. Depois de um dia, é transferida da UTI para a internação comum, onde passa por nova cirurgia, dessa vez para a inserção de uma sonda esofágica. No domingo, recebo a proposta de alta assistida, que a médica de plantão me explica que, a rigor, não é bem uma alta, mas uma medida para tentar contornar o estresse de permanecer fora de casa.

Ainda há uma miríade de remédios a se administrar – estimulantes de apetite, analgésicos, anti-inflamatórios, antieméticos, antibióticos – e uma infinidade de cuidados a se tomar. Os medicamentos devem ser esmigalhados, misturados em água e, respeitando-se uma técnica e um ângulo específicos para que o ar não entre, empurrados sonda abaixo, por onde também descerá a alimentação pastosa, seguida sempre de 5 ml de água, para higiene do tubo. A cada doze horas, a roupinha cirúrgica há de ser retirada – e, missão quase impossível, recolocada –, pois os pontos que descem do peito até o baixo ventre de Willow precisam ser lavados com soro. A fim de se evitarem infecções, o curativo do pescoço deve ser trocado diariamente: descolam-se as faixas de esparadrapo, desenrola-se a atadura, retiram-se as gazes, faz-se correr o soro, enxuga-se o soro, aplica-se a pomada epitelizante, recolocam-se as gazes, reenrola-se a atadura e recolam-se as faixas de esparadrapo.

(Recebo as instruções de olhos arregalados e respiração curta. É domingo, final de tarde, hora da ave maria, e eu sinto um medo terrível de todas as coisas. Quero fugir, quero cessar, mas não há quem enfrente os dias vindouros por mim. Quero me deitar no chão e não fazer mais nada, mas, para cuidar de Willow, só eu. Usar a sonda é difícil, limpar os curativos é difícil, organizar os remédios é difícil – ou talvez o problema seja eu, inapto até mesmo para o mais comezinho da vida. Meu corpo inteiro dói de tensão, e me sinto pulverizado por todos os cantos da casa, sem nada a que me ancorar. Gostaria de chorar. Não consigo chorar.)

Embora mantenha sua comunal indiferença com Hopper, Willow passa, sem explicações, a ser hostil à presença de Nimbus. Se ele se aproxima, ela rosna alto, arma-se em posição de ataque. Não é bom que se estresse, então me vejo obrigado a montar um pequeno refúgio em meu quarto. Água, comida, caixa de areia, tudo separado. Os outros gatos reclamam e começam eles mesmos a se estressar.

Para que minha gata alcance a cama sem precisar saltar muito alto, improviso uma escadinha com um pufe e uma cadeira. Ela dorme sobre meu peito, mal consigo me mover. Durante a noite, acordo com uma umidade quente entre as pernas. Willow havia feito xixi em cima de mim, e metade do colchão já estava molhada. Amoroso e enfurecido, tiro todos os lençóis e tento higienizar o local como o sono me permite. Volto a dormir no canto da cama. Grogue de remédios, Willow insiste em se deitar sobre mim. Eu deixo. Na madrugada seguinte, o incidente vai se repetir.

Levo minha gata à clínica para exames de rotina, que, dali em diante, serão muitos e muito constantes. Entrego-a à médica e, poucos minutos depois, ela me avisa que, por acidente, a sonda foi arrancada. Mas e agora, doutora, ela vai precisar passar por outra cirurgia? Não, o buraco da sonda se fecha sozinho. Mas e quanto à comida, que ela ainda recusa? Ah, vamos ver como fica.

(Acidente? Erro médico, isso sim. Willow é calma, é doce, não apresenta comportamentos arredios. Que veterinários são esses que não conseguem nem manipular um felino de maneira adequada? Sinto raiva, tenho vontade de gritar com todos da clínica, de chamá-los de filhos da puta burros, incompetentes e irresponsáveis. Uma amiga me pergunta se vou processá-los. Com a amargura resignada de quem sabe que, quando se depende de alguém, não se tem vez nem voz, respondo que não.)

De manhã, acordo e preparo o sachê, que sempre misturo com bastante água. É como Willow gosta. Quando, de olhinhos fechados, ela começa a comer do potinho em minha mão, fico exultante. Felicidade precipitada. No instante seguinte, me deparo com uma das cenas mais horripilantes de toda a minha vida: uma secreção amarelada e viscosa escorre pelo pescoço da minha gata. Será que é pus, meu deus? Mas de onde? Demoro um segundo a mais para entender que o líquido vaza através do que, até a tarde anterior, era o buraco da sonda. Até que eu caia em mim e me lance ao banheiro para buscar papel, Willow já terá bebido do fluido que, de tão abundante, escorre de volta para dentro do pote de comida.

Ligo desesperado para a médica. Não, doutora, aparentemente o buraco de uma sonda esofágica não se fecha sozinho. Voltamos para o hospital. Nova anestesia, nova cirurgia. A terceira em menos de duas semanas, dessa vez para colocar uma sonda do outro lado do pescoço e, claro, pontear o buraco que, quem diria, não é mesmo?, tinha permanecido aberto depois do suposto acidente na clínica. Willow sai bem da operação. Como é forte a minha gata.

(Decido mantê-la na internação até que esteja minimamente estável. Experimento um alívio gigantesco e vergonhoso por tê-la longe de mim. Ao mesmo tempo em que pondero sobre os gastos, sei que, assim, isento de tantas responsabilidades e afazeres, poderei descansar. Estou apavorado com a possibilidade de que Willow se vá, mas, para meu ainda maior horror, percebo que uma parte de mim deseja precisamente isto: que Willow morra. E se for assim pelo resto da vida? E se ela continuar a sofrer tanto? E se eu continuar a sofrer tanto? Pensamento intrusivo, clivagem do Eu, nomes vários para uma mesma e dura realidade: ser humano nenhum é herói – herói coisíssima nenhuma.)

Vou visitar Willow todos os dias, e todos os dias recebo notícias de intercorrências preocupantes. É o exame de sangue que acusa o início de quadro infeccioso, é o raio-x que sugere princípio de pneumonia, é a diarreia que se instalou e não quer ir embora. Algumas vezes, ela me recebe animada, fica em pé, passeia pelo cubículo e mia rouca – seu miado agora é rouco, quase um arrulho. Outras vezes, no entanto, a encontro abatida, em prostração mórbida, quase não interage com ninguém. Nessas ocasiões, me invade a certeza de que minha gata não vai sobreviver.

(Quanto tempo se passa nesse suplício? Gostaria muito de chorar. Não consigo chorar nada.)

Willow volta para casa. A quantidade de remédios já diminuiu substancialmente, a maior preocupação agora é fazer que ela coma. Acontece que ela não quer se alimentar, ao menos não nas quantidades prescritas pelos médicos – 240 gramas diários de ração pós-cirúrgica. 243, para ser mais exato. É um volume absurdo. Consigo lhe dar, quando muito, 60 gramas, que empurro cauteloso pela sonda e que são o suficiente para deixá-la lânguida de um jeito que não parece ser sadio. Por outro lado, se não forçasse o alimento, ela entraria em inanição. Em menos de um mês, minha gata já perdeu um quilo.

Minha irmã se hospeda aqui em casa e busca me ajudar. Entretém e desestressa os outros gatos, me ajuda a trocar o curativo da sonda, divide comigo o fardo do que, durante aqueles dias terríveis, não pode ser colocado em palavras, nem resolvido com remédios, unguentos ou bandagens. Uma noite, enquanto encho inúmeras seringas com ração, uma delas emperra. Para compensar, faço força em demasia, ao que, com a pressão acumulada, o êmbolo desliza e faz jorrar o líquido amarronzado por toda a cozinha. Bancada, prateleiras, teto. Dou um grito de ira. Minha irmã me pede calma e observa: Pedro, tu nunca, nunca poderia ter filhos.

(Não seria a última vez que eu explodiria. Alguns dias à frente, depois de minha irmã ir embora, encaixo a seringa na sonda e começo a injetar comida. Willow se incomoda e sacoleja o pescoço num tremelique rápido, ao modo de um cão a se secar. Agora há ração espalhada por todo o quarto, sobre a cômoda, sobre o chão, na parede e nos lençóis e fronhas limpinhos, trocados poucas horas antes. Grito com minha gata a plenos pulmões, até a voz falhar. Ameaço jogá-la na rua, mas, logo em seguida, como um louco, corro até ela e, num abraço, peço desculpas. Willow me olha como gatos olham quando estão em paz: com sonolenta indiferença. Ela não se afeta, mas eu sei que vou me torturar por semanas. Como as pessoas suportam ter filhos? Como as pessoas querem ter filhos?)

Questiono os médicos acerca das quantidades colossais de ração, mas eles insistem, e eu obedeço. Com ciência não se bate de frente, então faço o máximo para me aproximar da gramatura ideal. Quando me dou conta, estou empurrando comida pela sonda a cada duas horas. É exaustivo para mim e para Willow, que atravessa tudo como se alvejada por um dardo sonífero. Está catatônica. Quase não se move e dorme quase o dia inteiro.

(Quanto tempo se passa nesse suplício? Uma semana? Quinze dias? Gostaria muito, muito de chorar. Não consigo derramar nem uma lágrima.)

Num sábado de manhã, a nefrologista me liga. Quer testar uma teoria: e se a gente cortasse totalmente a alimentação pela sonda? Mas ela não vai morrer de fome, doutora? Ah, vamos ver como fica. E logo a aposta começa a se pagar. O milagre que leva Willow a procurar alimento não tem nada de extraordinário, sobrenatural, nem divino: é fome, apenas, sem mistificação. Livre do empanzinamento forçado, ela finalmente pôde voltar a ser uma gata natural, vivendo sob o império do instinto. Não era de comida que ela precisava – era de vontade de comer.

A normalidade se reinstala aos poucos, ao longo dos 45 dias que se passam desde o primeiro vômito. A sonda é desacoplada, os pontos são retirados, as últimas medicações são suspensas. Willow já não urina fora da caixa de areia, aceita a presença de Nimbus, e seus índices renais estão bons. Não perfeitos, nunca mais perfeitos, mas bons o suficiente.

(Na parede da clínica veterinária, uma frase desenhada: eles nascem aprendendo a amar do jeito que levamos a vida inteira para aprender. Não sei se é verdade, mas isso me ajuda a compreender que preciso ser mais brando comigo e que, no meio de toda a culpa, raiva, vergonha, ressentimento e cansaço, o que eu mais sinto por minha gata é amor.)

Ainda ontem Willow miou estranho, um miado abafado, como se algo em sua boca bloqueasse a passagem do som. Corri para a sala assombrado. Chegando lá, descobri um corpo estranho entre seus dentes: uma bolinha de papel. Minha gata me convocava para brincar da sua brincadeira favorita na vida. Largou o brinquedo improvisado aos meus pés e eu o joguei para longe. Willow saltou e, enquanto se engalfinhava sozinha com a bola, tive um ataque de riso. Ela vai ficar bem. Com umas três ou quatro vidas a menos, mas vai.

Por Pedro Jucá
21/03/2023 15h51