Pedra no Rim (de Um Gato)

Foto: Freepik

Willow vomita pela primeira vez numa segunda, 30 de janeiro de 2023, às 17:06. Sei disso porque enviava um áudio nesse exato minuto. Falava com meu namorado sobre problemas familiares quando fui interrompido por um grunhido estranho, aliás audível da gravação. Um miado prolongado, quase um lamento. A mensagem conta com 52 segundos e termina assim: “ah, meu deus!, tem um gato vomitando”.

(Não, não foi a primeira vez que Willow vomitou daquela maneira. Ao longo das semanas anteriores, episódios semelhantes haviam ocorrido, mas, como não eram frequentes, dei por bem encaixá-los na categoria de Problemas Não Tão Urgentes Assim. Cheguei a trocar ideia com a catsitter, que me alertou de que não, não é normal que gatos vomitem, nem mesmo para cuspir bolas de pelo. O plano era fazer um check-up logo mais, mas a bomba estourou antes. Se eu tivesse procurado um veterinário mais cedo, teria conseguido evitar tudo o que aconteceu depois? De culpa, não suporto pensar nisso, como também não suporto pensar que, naquele dia, os grunhidos que antecederam os vômitos da minha gata eram grunhidos de dor.)

De noite, ao voltar da academia, encontro mais vômito ao redor do sofá. Semanas antes, a catsitter havia aventado a hipótese diagnóstica de uma gastroenterite, e eu não resisto aos encantos e facilidades da automedicação. Um perigo!, sempre pregaram as campanhas de conscientização nas quais nunca acreditei. Tem sentido procurar um médico a cada dorzinha de cabeça? Do armário da sala onde guardo rações, brinquedos e remédios dos gatos, um omeprazol 10 mg me canta o canto da sereia. E eu caio. Empurro o comprimido pela goela de Willow e até lhe ofereço mais comida, que ela aceita com a serenidade de quem, submetida ao império do instinto, não sabe o que é se preocupar.

Pouco antes da meia-noite, ela vomita de novo. Um grunhido, e o pouco que havia ingerido se acumula sobre o tapete em um montículo ainda sólido. Começo a me crispar de pânico, me lembrando das histórias de gatos que engolem fios ou linhas e têm as tripas arrancadas ao defecar. Será que a levo logo para um hospital? Ligo para duas clínicas 24 horas e recebo informações confusas. Uma dá a entender que o exame de imagem só poderia ser feito pela manhã, outra, que o valor teria que ser pago em dinheiro. Não, pix não, só dinheiro vivo. Onde eu ia encontrar 350 reais em plena madrugada?

Por ser tarde da noite, naquele momento a internação seria inevitável. Mas eu não quero internar Willow, pois sei como é traumático para um gato ser tirado do ambiente em que habita. Decido, então, esperar que amanheça para levá-la ao hospital – quem sabe bastam alguns exames e medicamentos e ela já volta para casa.

(O que nos leva a tomar esta ou essa escolha, e não aquela? Existe mesmo uma racionalidade em nossos processos de decisão? Ou deliberamos sempre à contraluz das sombras do inconsciente? Optei por não levar Willow à clínica porque temia que sofresse em vão com uma internação talvez desnecessária. Mas sei também que, por trás disso, havia um outro receio, certamente menos altruísta, de que a pecha de neurótico, exagerado, dramático e hipocondríaco, adjetivos que muitas vezes me perseguiram ao longo da vida, acabasse me rendendo um diagnóstico de Síndrome de Münchhausen por Procuração. Quero ser leve, não quero ser uma daquelas pessoas carentes e solitárias que estão constantemente inventando doenças para familiares, pets ou vizinhos como forma de mascarar a falta de sentido da existência. Como antídoto, tropeço no extremo oposto: o pensamento mágico. Se eu fechar os olhos e fizer força e me concentrar o suficiente na ideia de que não, não há nada de errado com Willow, ela vai ficar boa. Durmo de porta aberta para garantir. Ao longo da noite, ela vomita mais duas ou três vezes, sempre sob o prenúncio daquele grunhido terrível. Pela manhã, o tapete da sala estará coberto de bile.)

Acordo cedo – se é que dormi – e levo Willow ao hospital mais bem avaliado. Reporto que não comeu nem bebeu água desde a tarde do dia anterior. A médica – por coincidência (ou ironia ou clemência dos deuses), uma nefrologista – puxa o couro das costas da minha gata e verifica que está bastante desidratada. Apalpa o abdômen e atesta dor. Enfia o termômetro, tira o termômetro e contrai o rosto em alarme, pois a temperatura está alta demais. Escuto o prognóstico de que Willow precisará ficar internada com a amargura de quem chega ao derradeiro ato de uma tragédia grega: pouco importam caminhos, escolhas ou decisões – o final está traçado desde o princípio. O destino do herói é um destino incontornável. Até o início da noite, terei recebido o diagnóstico: um cálculo renal desce pelo ureter da minha gata. Então é pedra no rim, doutora? Sim, é pedra no rim.

(Não consigo dormir pensando no sofrimento a que, mesmo sem querer, submeti Willow. Foram horas demais de um sofrimento tão excruciante que lhe causou até vômito. Em humanos, sei que a dor beira o insuportável. Por que não a levei de imediato para a clínica, meu deus? Herói coisíssima nenhuma.)

O tratamento na internação se inicia. Analgesia, fluidoterapia e um dilatador de ureteres, tudo na intenção de expelir a pedra sem maiores consequências. Infecções ou mesmo bloqueios mecânicos das vias urinárias são plausíveis, mas o improvável nos atropela. Na quinta à noite, recebo uma ligação da médica de plantão. Ela me pede para comparecer de imediato à clínica, pois precisa conversar comigo. Trêmulo, explico que sou ansioso e que não me adiantar o assunto seria tortura. Willow morreu? Não, mas foi constatada a presença de líquido livre em sua cavidade abdominal. Em termos menos técnicos: havia quase meio litro de urina solto dentro da barriga da minha gata. A pedra havia rompido o ureter, e era necessário que ela entrasse o quanto antes em uma cirurgia de emergência – e de alto risco.

(Mais para a frente, o cirurgião vai me revelar que, em toda a sua carreira, era apenas a segunda vez que pegava um caso como aquele. O quadro de Willow era ainda mais improvável porque a pedra só tinha 2,3 milímetros de diâmetro, e o ureter de um gato teria quase o dobro disso. A conta não fecha. Não há explicação para o que aconteceu.)

Chego na clínica esbaforido. A médica me detalha pormenores nefrológicos, mas me concentrar é impossível. Fala de orçamentos, valores, autorizações que assino com visão borrada. Descubro que, por motivos religiosos, há quem proíba manobras de ressuscitação mesmo em cirurgias veterinárias – nem os animais devem escapar dos desígnios divinos. De minha parte, nego apenas que o procedimento seja filmado. Tenho medo de que as imagens vazem e, um dia, ainda que acidentalmente, eu acabe assistindo à evisceração da minha gata.

No corredor para a sala de internação, sinto uma angústia subindo do peito à garganta. Ao ver Willow deitadinha em seu cubículo, a onda arrebenta, e o final da frase “desculpa, doutora, mas eu acho que vou chorar” sai entrecortado de soluços. Embora assustada com o movimento da sala ao lado, minha gata reage com uma cabeçada contra mim, que é o modo de os gatos dizerem: eu gosto de você. Me despeço sem saber se tornarei a encontrá-la.

(A expectativa da morte, descubro, acentua a vida – a antecipação do fim exacerba a sensualidade do estar vivo. Olho fixamente para Willow, capturo a imagem das vibrissas brancas destacadas em sua cabeça negra, escuto atento o timbre fino e límpido do seu miado, deslizo a ponta dos dedos sobre o pelo liso e hirto e afinal me entrego às texturas de seu corpúsculo com a inteireza de minhas mãos, pele, calor, gordura, ossos. Aguço todo o meu aparato sensorial na tentativa de, fincando fundo na memória estas impressões, retardar a ação do tempo, rio que deságua sempre num só oceano: o do esquecimento.)

Volto para casa e espero a ligação da anestesista. Por volta das 23 horas, ela me liga, avisa que a cirurgia vai começar em instantes e, com espantosa insensibilidade, me alerta sobre os riscos da intervenção. Como se anunciasse a previsão do clima, ressalta que, numa escala de 1 a 5, estaremos no grau 4. “A gente torce pelo melhor, mas tem chance considerável de acontecer o pior, tá?”. Desligo o telefone em choque.

Contra todas as expectativas, consigo cair no sono. Por volta de duas da manhã, acordo de sobressalto com o celular tocando. Quem me liga agora é o cirurgião, que me traz notícias que talvez eu sequer queira ouvir.

Continua semana que vem.

Por Pedro Jucá
14/03/2023 17h41