Encontrar Gente Famosa

Foto: Divulgação

Às 13h em ponto, abre-se o portão do M., restaurante badaladíssimo de São Paulo. Chefe celebradíssima, menu refinadíssimo, mesas disputadíssimas. Tudo superlativo, inclusive o preço. Levei anos para finalmente conseguir fazer uma reserva em horário viável – por coincidência ou não, o mesmo número de anos que levei para criar a coragem de, em sã consciência, pagar a fortuna que paguei.

Estava empolgadíssimo. Não só pela comida, que prometia ser mais arte do que refeição, mas também pela experiência, conceito abstrato que os marketeiros da gastronomia incutiram muito bem na nossa cabecinha classemediana. E, claro, para a minha cabeça, que, além de classemediana, é bastante dada a fazer humor com o próprio provincianismo, a tal experiência, para ser completa, para ser uma full experience all inclusive, passava por encontrar alguém famoso. Minutos antes de entrar, em meio aos demais mortais que, sob o sol causticante, se apinhavam em frente à porta do restaurante ainda fechado, eu havia provocado meu namorado com uma autoironia: “Será que a gente vai encontrar alguém famoso? Tô sentindo que a gente vai encontrar alguém famoso. Ah, não vim aqui pela comida, não: eu vim mesmo foi pra encontrar alguém famoso”.

No corredor de entrada do M., um aperitivo. Não, não de comida, de gente famosa: desenhada na parede, flutuando surrealisticamente em meio a árvores e matagais, uma mulher de ares magnânimos e vestido vermelho, uma mistura de Maria Padilha com… Shakira? Não tive tempo de ter certeza, pois a fila andou e eu segui restaurante adentro, já resignado com a ideia de que Maria Phakira seria o mais próximo de um famoso com quem eu cruzaria naquele dia.

Mal sabia eu.

Nem bem havíamos sentado à mesa, começou um burburinho entre os garçons. Dessa vez, foi meu namorado quem, à procura de respostas, me provocou: “aquela ali não é a Billie Eilish?”. Ri sem nem me mexer: “claro que não, nem no Brasil ela está mais”. De imediato, um pensamento me invadiu: mas sabe quem está? Olhei para trás por mero desencargo de consciência: a moça vestia uma camisa branca e um boné com cores do Brasil, por baixo do qual uma cabeleira basta, preta e ondulada descia até a metade das costas. De onde eu estava, eu não podia ver seu rosto.

Primeiro entrei em negação. Ah, daqui a pouco é o show dela no L., ela estaria ensaiando a uma hora dessas. Depois, olhei para trás mais uma vez e aguardei até que a moça misteriosa se virasse de lado: boquinha carnuda, rostinho pequeno, nariz de formato peculiar. Opa, pera lá. Meu cenho se franziu e a respiração acelerou. Exigi que meu namorado trocasse de lugar comigo, afinal, antes de tomar qualquer atitude, eu tinha uma teima para tirar – vai que era só uma desconhecida? Vai que era só a Lívian Aragão? Vai que era só a Janaina Paschoal?

Na mesa dela, as três amigas conversam em espanhol – mãos tremendo. Um funcionário passa e deixa escapar um “nossa, mas ela é bonita mesmo!” – suor escorrendo pela testa. Sem me aguentar mais, faço sinal para que a garçonete que as atende se aproxime:

— Moça, me perdoa, mas, pelo bem da minha saúde, preciso fazer uma pergunta indiscreta (com voz ondulando, como nos vibratos de um flamenco).

— …! (sem dizer nada, com dentes cerrados, maxilar contraído, lábios apertados e cabeça balançando para cima e para baixo, num gesto de afirmação).

— Não, moça, calma, tu sabe do que eu tô falando? (se endireitando na cadeira, para demonstrar a gravidade do diálogo).

— Sim…! (perdendo a compostura).

— Não…! – (perdendo a compostura). 

— Sim, aquela ali é a Rosalía!!! (exultante, um pouco enlouquecida, agarrando a toalha da mesa).

Cornetas régias tocando, tambores marciais ribombando. “E aí, meu amor, o que você achou da jaboticaba esferificada sobre cama de tomate fermentado com tagetes?”, meu namorado me pergunta. É em vão, o almoço foi pelas cucuias, toda a minha atenção está concentrada em bolar um plano de como dar início a uma amizade íntima e longeva com Rosalía. A abordagem é crucial, a primeira impressão é sempre a que fica. Será que eu simplesmente vou lá e interrompo o almoço da mulher? Será que finjo que derrubei o celular perto de sua mesa e, ao me levantar, falo com ela de supetão, como se surpreendido por sua presença? Será que suborno a garçonete trilíngue para me emprestar seu uniforme e passo eu mesmo a servi-la?

Por meus olhos e garganta, deslizam iguarias celestiais – feijoada molecular, ovas de tainha cozidas dentro de tripa de porco, vatapás desconstruídes, PANCs de nomes impronunciáveis, cordeiros ferventados ao longo de longas dezesseis horas –, mas, naquele momento, a minha própria existência perdeu qualquer importância. E, uma vez estabelecido o contato inicial, será que sigo uma linha mais agressiva, me agarrando ao pescoço dela e gritando “Rosalía, Rosalía, te quiero mucho”? Será que faço a linha Vamos Criar uma Conexão Real, fingindo desinteresse em tirar foto, e espero que, com isso, ela perceba como sou um ser humano iluminado e insista ela mesma em registrar o momento com uma selfie? Será que, bem sério, olhando no olho dela, começo a fazer a coreografia de Chicken Teriyaki, que silenciosamente eu vinha repassando na cabeça desde o momento em que a descobri ali (aponta dedinho, imita chorinho, soca um soquinho, faz orelha de coelhinho)?

Como equilíbrio é tudo nessa vida, procuro uma solução conciliatória entre a tietagem invasiva e o respeito ao espaço pessoal da artista: quando, indo embora, Rosalía passasse por mim, eu faria sinal para ela e, de longe mesmo, com um sorriso amoroso no rosto, desenharia no ar um coração com as mãos unidas. Não teríamos nenhuma selfie juntos, mas tudo bem, talvez, dali a dez anos, a memória fosse ajudada pelas incontáveis fotos que sub-repticiamente eu havia tirado durante o almoço, registros que demonstravam que, sim, Rosalía é gente como a gente e fofoca com as amigas, mexe no Instagram durante as refeições e até tira foto da sobremesa antes de cair de boca.

Rosalía pede a conta. Rosalía paga a conta. Rosalía tira fotos abraçada com a garçonete trilíngue. Rosalía se levanta. 

É agora. 

Prendo a respiração, largo o garfo e peço que Maria Phakira me abençoe com coragem. É tudo muito rápido: Rosalía desdobra as mangas da camisa, enterra o boné na cabeça e, experiente em evitar contatos indesejados, foge dali chispando, com o olhar fixo no chão. Num átimo, perco a única chance de, em toda a minha vida, ter contato direto com uma celebridade daquele porte. Minha inércia só não me deixa mais amargo porque é com uma ponta de satisfação que observo como ela trata os fãs que tiveram a audácia de interceptá-la antes da saída do restaurante. Foi por pouco, mas aquela careta de desprezo poderia ter sido para mim.

Sem ela ali, minha frequência cardíaca diminui, os talheres voltam a tilintar contra os pratos, as sobremesas eu aprecio como se fossem isto: sobremesas. O feitiço estava desfeito, e, enquanto um doce véu de normalidade recaía sobre tudo ao meu redor, eu voltava a ser um homem livre. Em instantes, eu e Paulo quitaríamos a conta e sairíamos de mãos dadas. Pegaríamos um voo para Curitiba e, durante todo o caminho de volta para casa, prestes a começar mais uma semana de trabalho duro e anônimo – semana repleta de marmitas de frango, arroz e salada do digníssimo restaurante da Vó L. –, escutaríamos Rosalía, rindo, cantando e dançando no carro. Extraordinário é bom, mas é no ordinário da vida que o melhor da vida acontece.

Por Pedro Jucá
04/04/2023 18h14

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