Psicose 4:48, Sarah Kane e a angústia congênita

Uma peça criada a partir de um estado depressivo crônico cuja mensagem clara de pedido de socorro é: apenas tente entender. Ou esconda a pena, o desprezo. Esse é o mote de Psicose 4:48, escrita por Sarah Kane, encontrada morta em seu apartamento, enforcada, aos 28 anos.

Afetada pelas tentativas de “cura química para algo congênito”, a personagem central, em um fluxo de ideias, analogias e uma sagacidade exemplar, justifica sua resistência ao tratamento em um cenário que, nesta adaptação, primou pela proximidade com o público e aspecto clínico.

Com diálogos e monólogos intercalados em cenas ambientadas principalmente pela luz e sonoridade, a limitação física clara expressa tanto pela cadeira de rodas quanto pela postura da personagem trazem à tona o embate com um médico monotemático e aparentemente frustrado, já que a sanidade só encontrada por ele quando perto de amigos ou de seu amor.

Cenas de revolta e descontentamento próprio, intensas, expressam a falta de perspectiva, de vontade de comer ou dormir ou qualquer coisa que seja. Há planos finamente elaborados para o suicídio: overdose de medicamentos, punhos cortados e uma corda no pescoço, um seguido do outro. Contestada pelo médico sobre a eficácia do método, uma gargalhada irrompe pela sala. Daria certo.

Segundo a protagonista, nenhum suicida deseja a morte; quer, antes, pôr fim à angústia combatida sem sucesso através de tantos outros meios. A atriz Rosana Stavis contracena com Eduardo Ramos, que interpreta o médico da sua personagem. Marcos Damaceno, diretor da peça, foi responsável pela tradução de retalhos competentemente apresentada, feita com base em outras traduções para o português, espanhol e na peça original. O espectador é parte fundamental da peça, visto que é constantemente lembrado como sendo um dos rostos de escárnio, uma das pessoas que não devem olhar para a personagem, uma das pessoas que não entendem pelo que ela passa.

Trata-se, afinal, de uma peça pesadíssima e recomendada a todos.

UM RELATO PESSOAL

A peça foi especialmente impactante para quem, afinal, entende, ainda que em instâncias mínimas, a condição da personagem. Afinal, o fato de não ser culpa da protagonista, e sim da doença, não minimiza o sofrimento enfrentado por ela. Em minha história pessoal, tive momentos um tanto complicados, e, enquanto a peça se desenvolvia, eu me perguntava: como diabos consegui passar por tanta coisa? Acho que através da literatura. E o que é uma peça de teatro senão mais uma forma de expressão, tanto de quem escreveu quanto de quem dirigiu? O exercício de projeção em tais apresentações não é exatamente fácil, mas e a velha história de remédio bom não curar coisa alguma?

Ainda que esteja distante de minha realidade hoje, a personagem poderia ter sido eu. Você. Uma pessoa que você ame. Sarah Kane, afinal, escreveu sobre cada um de nós.

TEATRO E COMUNIDADE ACADÊMICA

A peça foi conferida a convite da Dra. Liana Leão, que trouxe algumas palavras sobre o evento: “Creio que atividades como estas constituem uma estratégia  de valorizar o aluno de Letras e de melhorar sua  formação acadêmica ao compreendê-la em um  contexto cultural mais amplo.”

“Tenham a certeza de que esta noite de sábado, dia 24 de outubro, foi um sucesso e ficará na memória de todos. Tanto alunos quanto professores apreciaram muito, aproveitaram a oportunidade de aprender mais sobre a dramaturgia e o teatro e saúdam a concepção ampla de ensino  que permitiu ao Celin e à UFPR promover e apoiar a atividade”, complementou.

A escritora Luci Collin também esteve presente e disse: “A oportunidade oferecida aos nossos alunos  de poderem assistir à peça Psicose 4:48, com primoroso elenco e direção,  aponta para uma perspectiva de formação acadêmica que valoriza não apenas o âmbito da sala de aula, estimulando o aluno a redimensionar sua própria experiência de literatura e de curso de Letras.”
Thais Cons foi outra estudante que ressaltou a importância de adaptações teatrais para a formação de qualquer pessoa. “Como estudante de letras, muitas vezes nós temos uma visão mais teórica e abstrata do texto literário. O estudo do teatro e do gênero dramático é justamente o momento da nossa mente se abrir para as possibilidades das interpretações e do palco. É por isso que gostei tanto de poder ver a encenação premiada de psicose 4:48: ver um texto dramático canônico do teatro contemporâneo encenado, na prática, é uma oportunidade única. A riqueza de ler o texto e estudá-lo, de pensar as suas multiplicidades e depois ver a peça como pensada pelo diretor traz um aprendizado em muitos níveis. Com certeza lembrarei dessa experiência como um momento impactante na minha formação.”
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O graduando em Artes Visuais pela UFPR Renan Archer não deixou de comentar também: “A peça fala de um estado de consciência, da consciência da própria escritora, toda ferrada pela medicação, por suas condições psicológicas. A peça enfatiza as expressões físicas que um psicológico em crise pode ter; como se manifesta na postura, na fala, nos gestos, nas atitudes racionais e no relacionamento com um outro alguém. Não enfatiza visualmente os pensamentos e seu interior nem mantém o espectador apenas dentro da cabeça de alguém. Por mais que o cenário seja mínimo, o diálogo constante e a ambientação preparada para criar momentos de tensão tornam todas as falas imersivas. Parece uma prova de que a tristeza chega a níveis mais profundos da alma”.
“O que acontece na maior parte do tempo é um relato sobre o ambiente exterior e como se manifesta a psicose na realidade e em contato com os outros. Ainda assim, é como uma porta de entrada para entender o interior, um contato com o que sentia a personagem”, finalizou.
Por Alex Franco
26/10/2015 10h22