Quem acompanha a IdentidArte já conhece minha saga com as peças do Ave Lola. Estou desde 2018 tentando casar minha agenda com a disponibilidade de ingressos para as peças deles e, por um acaso do destino, parecia que esse casamento nunca iria acontecer.
As peças presenciais do Ave Lola voltaram a acontecer no segundo semestre de 2021. Eles montaram um palco dentro de uma tenda dentro da Associação Eunice Weaver, no Bacacheri. O cenário é perfeito para a imersão no mundo do realismo fantástico de Cão Vadio, a peça que assisti na última sexta-feira à noite.
Eu havia reservado meu ingresso via Instagram @ave_lola para o domingo de feriado. Reservei logo no primeiro dia que estavam disponíveis, para garantir que, dessa vez, ia dar certo!
Não deu.
Choveu.
Por ser um palco praticamente ao ar livre, as chuvas fortes – que são ótimas para Curitiba após um ano e meio de seca – são más notícias para a peça. O destino ganhou mais um ponto nessa saga quando recebi o aviso de cancelamento.
Destino 3 X Luiza 0.
Mas havia uma luz no fim do túnel! A possibilidade de remarcar o ingresso para a próxima sexta-feira. Comprei briga com o destino e reservei novamente o meu lugar. Os ingressos são no sistema “pague o quanto vale”, então o pagamento é realizado só depois que o público assiste a peça.
Juntei as mãos, fiz uma prece ao universo para não chover e prometi que, se desse tudo certo, a coluna dessa semana seria sobre a peça.
Cheguei 40 minutos antes da peça começar. A cozinha já estava aberta e servindo comidinhas deliciosas. Espetinho, empanadas, ceviche e arroz doce. Para beber, água, suco e vinho. O cardápio era um pouco mais extenso, mas pelo que vi ao redor, essas eram as opções favoritas do público.
No gramado entre a tenda e a cozinha estavam disponíveis mesas, bancos e almofadas, tudo iluminado por cordões de luz que deixam toda noite ao ar livre com aparência mais acolhedora. Peguei meu jantar, o programa e acabei encontrando, no meio do caminho, o Maringas Maciel.
O Maringas é fotógrafo do Teatro Guaíra e amigo da trupe Ave Lola. Já viajaram juntos para a Amazônia, expedição que resultou na peça Manaós, para os atores, e, para o fotógrafo, em um dos projetos de fotos mais lindos sobre o norte do Brasil que já vi.
Maringas me adotou durante a noite e me levou para conhecer outras pessoas que estavam ali para ver a peça pela primeira vez. Me considero uma pessoa mais observadora. Se estou em um ambiente novo, prefiro ouvir em vez de falar. E naquela noite me diverti ouvindo as pessoas.
Fazia tempo que não ia em um evento cultural sozinha, com a expectativa única de assistir um bom espetáculo, e acabava conhecendo pessoas e ouvindo suas histórias. Mais uma coisa que só é possível em eventos presenciais.
Faltando cinco minutos para o espetáculo começar, fomos em direção a tenda. Os lugares variavam de pallets com almofadas, cadeiras de vários tipo e praticáveis. Cada lugar (ou grupo de lugares) está marcado com o nome da pessoa que fez a reserva. No meu caso, uma cadeira no fundo da plateia.
Na minha frente sentou-se uma das pessoas que eu acabara de conhecer, a artista plástica Katia Horn. Maringas me promoveu ao melhor lugar da casa, bem ao lado dela. Estávamos ambas transbordando de felicidade: nossa primeira peça de teatro presencial em quase dois anos!
As cadeiras eram super confortáveis e a visão do palco, totalmente desobstruída. Quando a Ana Rosa Tezza veio dar as boas-vindas ao público, ela acenou para nós e disse: “essas duas não levantam daí por nada nesse mundo, estão nos melhores lugares feito duas rainhas”. De fato, as cadeiras pareciam um pouco como tronos.
O programa do espetáculo vem dentro de um envelope. A identidade visual, como sempre, impecável. O programa, se o dono assim quiser, pode ser transformado em lindos cartões postais.
Fui sem saber nada da peça, com a intenção de experienciar sem direcionamento prévio, mas não resisti ao programa bonito e acabei dando uma espiada. Descobri que a peça pescava referências no realismo fantástico e nasceu a partir de uma residência artística realizada pela companhia com o diretor chileno Jaime Lorca.
A música era tocada e cantada ao vivo. A criatividade para os efeitos sonoros e a versatilidade dos músicos me chamaram a atenção. O som da máquina de escrever, por exemplo, era imitado pelas teclas de um acordeão. Os sons dos grilos, cigarras e pássaros, porém, não consegui identificar se vinham da banda ou do cenário lá fora.
Cão Vadio se passa em um território onde “alguns se escondem, para o qual alguns foram levados à força e onde alguns chegaram carregados pelo vento do deserto ou trazidos pelas tempestades”. No texto há trechos originais misturados com García Márquez, Borges, Vargas Llosa, Shakespeare e Tchekov.
(Antes que você pense que identifiquei tudo isso sozinha, permita-me uma ressalva: no fim da peça, fiquei propositalmente orbitando ao redor dos artistas e ouvi as referências mencionadas pela Ana Rosa. Mas falarei sobre isso mais adiante).
O cenário e os objetos cênicos também são muito bem explorados. Os bonecos que atuam como verdadeiros personagens; as escadas, que estrelam algumas das cenas mais impactantes e bonitas do espetáculo.
A iluminação foi um show à parte, mas também, isso já era esperado. Quem assina a luz é Beto Bruel, um dos grandes ícones do teatro no Paraná e, por que não, no Brasil.
Não vou dar mais spoilers. A peça vale muito a pena ser assistida. Atual, divertida e reflexiva. Torna difícil a tarefa do público de “pagar o quanto vale” no final. Como calcular um valor para tamanho espetáculo?
Como é possível criar um espetáculo assim? Ainda mais em uma tenda, sujeita à chuva, ao frio e aos mosquitos e mariposas que sempre querem seus lugares bem embaixo do foco de luz?
A fila para pagar estava grande e eu não tinha pressa para voltar para casa, então me enrolei para ir embora, na expectativa de, quem sabe, poder ouvir o papo dos artistas envolvidos no espetáculo.
Minha estratégia funcionou. Fui recebida, como sempre com muito acolhimento, pelos artistas. Ouvi como a peça, que estava para ser estreada antes da pandemia, sofreu algumas alterações e foi o foco de um intensivo de um mês da companhia. Os artistas se retiraram, em julho, para uma chácara e, por lá, lapidaram a peça até o ponto da apresentação que havíamos presenciado naquela noite.
Ouvi sobre as referências aos grandes escritores e dramaturgos no texto, descobri as dificuldades e aventuras que envolvem qualquer manifestação artística dependente de lei de incentivo que precisou estrear nos últimos dois anos. Por fim, ainda ganhamos um tour pelo camarim.
No final, me senti bem-vinda e recebida com carinho por aquele grupo de artistas talentosos. Assisti, finalmente, uma peça deste grupo que sempre admirei com meus ouvidos.
E já quero ver de novo! Quero colecionar as peças dessa trupe. Destino 3 x Luiza 1.
Bora virar esse placar!
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