Nariz de um Focinho do Outro.docx

Foto: Arquivo Pessoal

Jogada ao meu lado no sofá da varanda, onde vezes fico por horas observando a vida de um cruzamento de avenidas na esperança de ser tomada por uma súbita ideia do que escrever, Berenice, com o rabo pra cá e a cabeça pra lá, vira o pescoço em minha direção e fala, através dos latidos silenciosos do olhar pedinte, Escreve sobre mim.

Escrever sobre você é difícil, Berenice. Por que às vezes parece que escrevendo sobre você, estou quase escrevendo sobre mim. E o risco de cair em uma autoterapia através da escrita é grande, e impublicável. Não que eu seja uma yorkie atentada que já acorda rodopiando sobre duas patas escancarando os indícios enormes de hiperatividade e por vezes quase irritante, sendo muito generosa no quase, porém fofa, muito fofa, e que adora um colo, um carinho na nuca, mas disfarça que não gosta virando o focinho de um lado para o outro. Isso não. Mas fora isso, vejo em você, algumas semelhanças com minha personalidade. 

E não sou um caso único, já previa radicalmente a clássica cena do desenho dos 101 Dálmatas, que os cachorros eram fisicamente idênticos aos seus donos (acho que o coque de Berenice às vezes lembra um pouco o meu). Pensando nos dogs que conheço, e em suas donas e seus donos, aquela cena não poderia estar mais certa. 

Têm as preguiçosas que se pudessem passariam o dia espalhadas no sofá, de tranquilas que são, levantando só para comer, como uma versão canina, ou humana, do Garfield. Os que latem, e gritam, para cada ônibus, ou grupo de pessoas, que passa, porque fazem questão de cumprimentar e falar com todo mundo. As que adoram um bate-papo, que conversam e falam, e falam e conversam, em gemidos de latidos ou em outras vozes. As que andam pelos muros, sempre sem coleira e em seu ritmo, obstinadas pelo brinquedo da vez.

Olho de novo para Berê, esparramada do meu lado. O pescoço relaxado no sono. Já ouviu o tec tec começar, e sabe que agora não adianta mais tentar me convencer a escrever sobre ela. Tão bonitinha. Fofinha. Dormindo. Minha mão não se aguenta e dou uma leve apertada na sua patinha, emitindo o som de um animal inexistente. Ela dá um pulo, me olha com cara de reprovação e sai do sofá. Pra que mexer com quem está quieto. Mas agora foi

Curiosa sobre essas semelhanças animalescas, fui googlar. E de fato, estudos mostram que os cães e seus donos podem ter personalidades parecidas, ainda que enquanto um não para de olhar no relógio o outro não para de latir. Aparentemente moldamos a personalidade dos nossos dogs, a partir do dia-a-dia. Outros falam que quando vamos escolher um cachorro já vamos direto no parecido conosco, justificando as semelhanças. 

Não escolhi Berenice. E desde a segunda noite que ela dormiu comigo, antes de conhecer meu dia-a-dia, já puxava meu lençol às quatro e meia da manhã querendo brincar. Então não sei bem qual a real influência que faz sua personalidade – às vezes, e só às vezes – ser parecida com a minha. Mas sei que se eu não jogar logo essa bolinha, Berenice não vai parar de latir. 

Por Rai Gradowski
19/10/2021 13h45

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