Balanço Geral

Foto: Elena Mozhvilo/Unsplash

2022 foi um ano terrível para mim. 

Já nos primeiros dias de janeiro, depois de séculos enfurnado em rigoroso isolamento social, descobri que estava com Covid. Nem bem tinha voltado de Fortaleza – para onde havia viajado na tentativa de escapar do que, naquele momento, meu apartamento representava para mim –, comecei a tossir, tive febre e fui abatido por um cansaço extremo que me deixou de cama por umas duas semanas. E, pior do que tudo isso, lá estava eu, obrigado, mais uma vez, a me trancar em casa. Só que, dessa vez, sozinho. Às vezes, o destino não é só irônico: pode ser cruel também.

Precisei voltar a tomar remédios. Chorei ao som de None But The Lonely Heart, do Tchaikovsky, e de Escândalo, na voz do Caetano (deixei ambas no repeat por meses). A maior parte das plantas da minha casa morreu. Um amigo foi feito refém durante o carnaval no Rio, terminei minha primeira e única noite de Sapucaí numa delegacia. A relação com a família, que nunca foi lá muito próxima, ficou ainda mais distante. Levei um golpe de alguém que considerava amiga. Não consegui revisar o romance, que ficou parado por um ano inteiro. Por muito pouco, não conquistei aquela promoção no trabalho. 

Voltei a ficar meio paranoico, a respirar difícil, a balançar as pernas sem parar, e, limpo de psicotrópicos, meu sangue indócil ferveu com facilidade. Bebi mais do que deveria, li pouquíssimo, não estudei quase nada. Dei pouca atenção a meus amigos, temo que tenhamos nos distanciado além do ponto de retorno. Gastei uma quantidade colossal de horas diárias nas redes sociais – acho que estou viciado, meu cérebro talvez precise de um reset. Percebi que não consigo mais me concentrar em nada. Tive Covid uma segunda vez – Covid longa, daquela que parece carcomer faculdades mentais. Não sei se me recuperei. Roí unhas, arranquei sobrancelhas. Minha calvície piorou, meu joelho esteve prestes a estourar e, debaixo do meu olho direito, se instalou uma bolsa que, desconfio, veio para ficar.

O Brasil perdeu a copa. Bem no dia em que, depois de comprar comidinhas e bebidinhas, inventei de assistir ao jogo em minha própria casa.

2022 foi um ano maravilhoso para mim. 

Meus gatos estiveram bem, ri de suas estripulias sem sentido, me enterneci quando se deitaram a meu lado na cama e começaram a ronronar de puro amor. Willow dormiu em cima de mim, Hopper amassou pãozinho na minha barriga, Nimbus melhorou 100% da doença misteriosa que, ano passado, lhe tirou o movimento das patas traseiras – voltou a correr, a fazer bullying com o irmão e a saltar na pia do banheiro e esperar que a gente abra a torneira.

Terminei uma pós-graduação em Escrita Criativa e finalmente publiquei meu primeiro livro. Por mais que eu sempre teime em alardear o contrário, me lembrei de que, quando querem, as pessoas podem, sim, ser generosas: quem gostou do meu trabalho foi gentil o suficiente para divulgá-lo – quem não gostou, ainda mais gentil por não falar nada. Minha máxima pessoal de não tem trabalho ruim, o ruim é ter que trabalhar perdeu força – me dediquei à Literatura com o tônus de quem ainda é jovem e não descobriu que, no mais das vezes, sonhos são refratários a realizações. Tive a cara de pau de oferecer livros a estranhos na internet, montei embalagens mais com dedicação do que com habilidade manual e, de tanto ir aos Correios, fiz amizade com as funcionárias (sempre umas queridas).

Comecei a escrever uma coluna semanal e encontrei quem gostasse do meu blá-blá-blá. Para minha surpresa, não faltou assunto, e, bem ou mal, logrei manter um mínimo de qualidade nos textos.

Recebi uma das notícias mais importantes de toda a minha carreira de escritor (aguardemos anúncios oficiais).

Fui à Flip pela primeira vez. Participei de uma mesa de debate e realizei o feito heroico de não sofrer uma síncope nervosa. Tive medo de ser cancelado. Não fui cancelado. Lancei meu livro durante a Feira, devo ter vendido dois ou três exemplares, mas estive rodeado de pessoas genuinamente importantes para mim. Conversei com Annie Ernaux e gastei todo o meu francês para lhe declarar que gostava dela não só por ser genial, mas também por me fazer recordar minha avó – de quem, mesmo viva e bem, sinto sempre muita falta.

Revi minha avó. Revi minha mãe e resisti a ser muito duro com ela. Revi meu pai e me permiti ser afetuoso com ele. Minha irmã foi nomeada num ótimo concurso, agora veio morar mais perto de mim. Reencontrei amigos que não via há mais de quinze anos. Antes do lançamento do livro em Curitiba, uma amiga querida se ofereceu para passar a camisa que eu queria usar no evento. Fiz uma viagem internacional em que tudo deu certo. Atravessei o St. James Park (com uma inimiga querida) em vivo debate sobre as relações entre matéria e memória. Cruzei o Reino Unido a pé (longa história).

Li trinta e dois livros (talvez não tenha lido tão pouco assim, afinal). Nesse finalzinho de ano, voltei a revisar o romance e me sinto disposto a dar meu sangue por ele. Passei o minoxidil com regularidade, quase nunca me esqueci de tomar a finasterida, meu joelho parou de doer e, embora não saiba até quando, o olho esquerdo segue jovem, sem nenhuma bolsa pendurada debaixo dele.

Fiz as pazes com o amor. Em nossa primeFotoira viagem juntos, meu namorado, que nem namorado era ainda, não sossegou até consertar a luminária quebrada do quarto. Fez o mesmo com meu coração – e com meu apartamento, que, além de não me causar mais pânico, passou por reparos e ganhou um novo playground para os gatos. Comi da comida que ele me preparou, me espreguicei no sofá de sua sala com decoração maximalista, fiquei admirado com sua cerâmica delicada e me enchi de emoção quando largou tudo para guardar meu lugar na fila de autógrafos da Annie Ernaux. Seus amigos, que também se tornaram meus amigos, já gostam mais de mim do que dele (a meu lado, com ciúmes, ele protesta contra esse meu exagero).

Nessa última crônica do ano, portanto, um único desejo para 2023: que, com felicidade ou com dor, não importa, seja tão bem vivido quanto 2022.

Por Pedro Jucá
20/12/2022 14h37

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