Quarta Dose

Foto: Ed Us/Unsplash

Entro no Posto de Saúde sem saber para onde ir. Estive naquela rua muitas vezes, bebendo caipirinha e me balançando ao som do samba do bar da frente. Do lado de dentro do prédio público, todavia, não há álcool para quebrar gelos – e, em matéria glacial, bem se sabe que o curitibano médio é especialista. Depois que uma mulher tromba em mim e, sem pedir desculpas, segue rota como se nada tivesse acontecido, dou por bem ficar de cócoras em terra de sapo e, no quanto possível, evitar interações humanas. No entanto, não encontro filas, nem placas que indiquem direção, nem maquininhas que cuspam senhas, então sou obrigado a buscar informações no balcão.

Pigarrear três vezes não desperta as funcionárias de seu transe metaversal. Vidradas em seus celulares, ignoram obstinadamente minha presença. Saúdo uma delas com um oi, com licença, tudo bem?, e ela me mira como se eu tivesse acabado de anunciar um assalto. Indico que estou ali para tomar a minha quarta dose da vacina contra Covid, ao que ela solicita meu CPF e, cabeça baixa de novo, lança-o no sistema. Enquanto meus dados são processados, uma senhora asiática se aproxima e, antes de fazer qualquer pergunta, é bombardeada com o carinho peculiar da outra atendente:

Mas de novo?

— …?

— Não é a senhora que vive sempre aqui?

— É minha irmã…

— Nossa, mas são idênticas!

A senhora ri por conveniência. Um riso amarelo de quem passou a vida inteira ouvindo comparações e talvez só agora, ali, no meio da balbúrdia da saúde pública brasileira do pós-pandemia, descubra que uma antiga desconfiança sua de fato procede: sim, é ela a irmã mais feia. A atendente ri de volta sem nenhum pedido de desculpas, inconsciente da cientificamente comprovada incapacidade caucasiana de diferenciar traços e identificar rostos de pessoas de outras raças. Num assomo de militância, me sinto prestes a acusá-la de etarismo ou xenofobia, mas depois me lembro de que há uma máscara cobrindo 78,16% do rosto da senhora. De fora mesmo, só os olhinhos puxados e as rugas na testa.

Colocando para descansar o militante que há em mim, sigo em meu propósito. Procuro uma cadeira no salão onde fui instruído a esperar e tomo assento. Dou um pulo de susto quando um menino começa a urrar na sala contígua. Grita como se lhe arrancassem um rim. Será que o nome da Unidade de Saúde – Mãe Curitibana – era uma ironia? As crianças ao meu redor se alvoroçam. Puxam as mães pelo braço, enroscam-se no pescoço dos pais. As mais arredias tentam fugir, lutam por se desvencilhar dos adultos que, déspotas, ditadores sanitários, insistem em submetê-las ao que só pode ser um procedimento de tortura medieval (desafiando todos os postulados da mecânica Newtoniana clássica, o pequeno antivax escapou do alcance da enfermeira e agora escala, pela nuca, o couro cabeludo da mãe).

Uma menina captura minha atenção. Deve ter seus dez anos e, por cada um de seus gestos, parece viver dos piores momentos de sua primeira década. De pé diante da mãe, contorce-se numa coreografia estranha e sem alarde: pressiona a bochecha contra o queixo da mulher, desliza as mãos frouxas sobre os braços dela, balança os pés não como quem está impaciente, mas como quem, exausto, para não desabar de vez, precisa transferir de uma perna à outra o peso do próprio corpo. Mesmo que seus cabelos estejam despenteados e alguns fios se preguem à fina camada de suor que se forma em sua testa, não há nela desgrenhamento algum – é discretíssima a sua angústia.

É discretíssima a sua angústia e, por isso mesmo, muito difícil de assistir. Vê-se que gostaria de reagir de alguma forma, mas, por covardia, fraqueza de ânimo ou, quem sabe, generosidade de não querer incomodar os presentes, sofre calada. Se pudesse, berraria como o menino da sala ao lado, choraria como muitas das outras crianças na fila de espera, articularia, ainda que baixinho, palavras como por favor, mamãe, vamos embora. Não consegue, fica a meio caminho e, nesse nem-lá-nem-cá, monta um espetáculo desolador. Quando seu olhar esgazeado encontra o meu, sou tragado para dentro dele e, nesse mergulho forçado, lancina em mim o meu passado. Recuso-o de pronto. Sou obrigado a virar o rosto e, assim, abandoná-la.

Por sorte, ouço meu nome. Pela irritação da atendente, não deve ser a primeira vez que me chama (em minha defesa, uma máscara cobre 61,48% de seu rosto, abafando a sua voz). Pedro Juca? Pedro Jucá, tenho a coragem de corrigir um erro que, em outros tempos, teria deixado passar (em sua defesa, a maioria dos sistemas não admite acentos). Há cinco mulheres de branco dentro da salinha diminuta, não consigo identificar se são enfermeiras, técnicas de enfermagem, psicólogas prontas para tratar afasias pós-traumáticas ou médicas aptas a declarar a hora da morte de pacientes (não deixa de ser muito misterioso o súbito silêncio do menino da sala ao lado). 

Uma das mulheres me pede para sentar e erguer a manga direita da camiseta. Tenho a força de ânimo para contestá-la: não pode ser no outro braço? Ela me informa que o Ministério da Saúde só permite vacinas no braço esquerdo em casos de problemas de saúde no braço direito – ou tatuagens. Sinto vontade de rir, mas consinto, já tem gente demais desacreditando as instruções das autoridades nacionais e internacionais de saúde. 

Quando ela limpa meu ombro com um algodão seco, todavia, lanço um novo desafio: e o álcool, cadê? Pergunto porque estou mais preocupado comigo do que com a possibilidade de incomodá-la. Uma outra mulher responde: aparentemente, desinfetar o local da injeção com substâncias voláteis diluía o veículo do imunizante e, portanto, mitigava seu potencial. Nova vontade de rir, novo consentimento. Eu que não ia discordar da ciência – vai que, dali a pouco, eu começava a achar que vacina causava autismo?

Picadinha. Novo algodão (seco). Pressão no braço. Nossa, nem sangrou! Vou embora do Posto sob efusivas despedidas – curitibano também pode ser muito caloroso, sim. Não volto a encontrar a menina que, instantes antes, silenciava em terror. Já não me aflijo: intuo que, um dia, ela também haverá de aprender a expressar suas demandas e temores. Para alguns males só o tempo é antídoto. Para outros, felizmente, existe vacina. Enquanto espero pelo motorista do aplicativo, começa a chover. Percebo que meu braço lateja, mas não me importo. Em até quinze dias, sob renovadas imunidades, a vida voltará a fluir com segurança. 

Por Pedro Jucá
13/12/2022 15h42

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