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foto: Canva

Faço uma curva meio aberta e estranha ao volante e o motorista do carro na pista ao lado dá uma buzinadinha e fica abanando a mão pra eu abrir a janela. Empurro com o indicador o botão e o vidro abaixa. Pisando bem de leves no acelerador e olhando um pouco pra frente e um pouco pro cara, leio em seu rosto: pneu furado.

É a segunda vez em menos de três meses que um artefato maldito esvazia o pneu esquerdo traseiro. Na primeira, foi um prego gigante de uns onze centímetros. Fui sair numa manhã e estava lá — o pneu espalhado no chão parecendo uma lesma desgosmada.

Passei na borracharia e o cara me deu o prego e eu guardei no console do carro não sei bem porquê.  Era torto em uns 45 graus e só a ponta furante com início de ferrugem. Toda hora que o trânsito segurava eu catava o prego e ficava ali olhando e virando de um lado pro outro entre meus dedos; quando o sinal abria eu jogava no console de novo.

Até que um dia — em um ato de imprudência idiota —, depois de meses cultivando o prego no console do carro, eu me desfiz dele. E aí o que aconteceu? Furei o pneu de novo.

Queria dizer que não sou uma pessoa de superstições e crendices, de ver sinais em tudo e ficar meio assim com as coincidências, me colocar aqui como uma hiper racional que não acredita nos mistérios da vida. Mas toda ficção tem limite.

Sou do tipo que na praia desvira a havainas do desconhecido do guarda-sol ao lado. Olho no relógio horas e minutos iguais e sei que ela tá pensando em mim. Prendo no quadro de cortiça o bilhetinho do delivery porque sinto que foi escrito com a caligrafia do universo, comigo de destinatária.

Então não sai da minha cabeça que é coincidência demaaais exatamente quando eu jogo fora o prego, o mesmo pneu volta a murchar.

Paro na borracharia, de novo. O cara tira o pneu furado e coloca numa bacia com água.

Me pego imaginando se ele vai me entregar o mesmo prego de antes. Vai que o prego ficou puto pelo abandono e resolveu voltar pro meu carro. Vai que eu atirei o prego na rua (porque não me lembro, acredito que não, mas talvez sim, mas mais provável que não), mas vai que atirei na rua e depois passei por cima dele de novo. Aí seriam as próprias deusas em complô com o prego se vingando da minha canalhice. Pelo menos daria uma boa história.

 Mas vem o piá. E me entrega um parafuso. Um pedaço de parafuso de nem quatro centímetros, sem graça pra caramba.

Saio sem uma boa história, e refém de um parafuso no console do carro.

Por Rai Gradowski
22/08/2024 10h27

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