Só Farelo.docx

Foto: Towfiqu Barbhuiy/Unsplash.

O rosto começou a endurecer, e qualquer levantadinha na sobrancelha eu sentia o queixo repuxando. Foi sábado de manhã, minha primeira experiência com máscara de argila. Sempre fui um pouco básica com os cuidados da tal cútis, me limitando ao protetor solar diário logo após o banho (se não for inserido na planilha do hábito, com rotina e ritual pré-estabelecidos, eu esqueço), e vez ou outra um creminho antes de dormir (aqui o vez ou outra pela inexistência do tal hábito citado, que seria impossível pelas variáveis de horários e condições que vou me deitar).  

Depois de acabar a barulheira do liquidificador, voltei a agulha da vitrola pro começo do disco, e me joguei no sofazinho da varanda, degustando o sábado de manhã nos goles de um suco de laranja com gengibre. Entre a segunda e terceira faixa da Céu, ela troca para o LP do Elton John, e senta do meu lado com um pote de vidro de tampa de metal meio dourada e uma meleca cinza escuro dentro. Espalhando a meleca na cara, olhando em um espelho em forma de dente (que até hoje não sei explicar a origem), me pergunta: Quer? Olhando meu reflexo emoldurado pelo dente molar (ou pré molar – mas certamente não canino), noto que os anos passaram e já estão se expressando na minha pele. Por que não?

Com dois dedos, ela segurando meu reflexo, espalho a meleca no rosto. Do meio da testa até a ponta do nariz. Queixo. Bochecha. Laterais. Rosto todo preenchido. Em alguns segundos já vejo uma parte da argila começar a secar antes da outra, e a máscara ir atingindo tons azul acinzentado diferentes. Os rostos, meu e dela, aos poucos vão ficando de tonalidade uniforme, transitando para uma máscara de avatar meio manchada até em uma cor de asfalto de cidade no litoral. Uma sessão de fotos dos diferentes tempos de secagem da argila foi feita – e revelada.

Aos poucos, o endurecimento. Abrindo a boca lentamente, sinto a bochecha. Uma tentativa de leve sorriso, puxa lá na altura dos olhos. Sensação louca de ter que ficar, não só calada, mas intacta, sem mexer uma ruguinha que seja. Caso o contrário, o resultado é exatamente o que vejo do meu lado: farelo. 

Ela abre e mexe a boca, contando alguma história qualquer do grupo de pesquisa, e no refrão de Rocket Man, canta com todas as expressões que a música causa. Vai até a outra ponta da varanda, acende um cigarro, e entre um trago e outro esfrega levemente os dedos na bochecha, fazendo cair alguns farelinhos no chão. Continua fazendo caretas naturais da expressão, como se não tivesse com um cimento endurecendo a cara. Eu, mexendo só os globos oculares e tomando cuidado para não respirar muito forte e fazer um jato de ar sair pelo nariz com mais força do que deveria interferindo na perfeição da máscara, deixando-a tão intacta que tive medo de tirar e sair meu rosto junto. Ela, só farelo. 

Por isso que você não tem paciência pra fazer essas coisas. Não precisa ficar tonga aí, falando de boca fechada. Pode viver normal, só relaxar e aproveitar o rolê. Com o rosto como pedra, estouro a máscara com uma puta abertura da boca e franzimento da testa, como em um berro silencioso. Nada que uma passada de aspirador não resolva.    

Por Rai Gradowski
21/09/2021 15h44

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