Precisamos falar sobre Elena Ferrante e A Amiga Genial

Lila, Lenù e Nápoles

É necessário distanciamento para absorvermos o impacto de algumas coisas em nossa vida. Parece que o normal é que no momento exato em que vivemos momentos que martelarão em nossa cabeça por anos, nós não tenhamos ainda noção da dimensão que eles irão ocupar em nossa memória. Algumas vezes, durante alguma viagem, ao perceber que estou vivendo um momento muito feliz, paro e penso comigo mesma: “vou me lembrar disto para sempre”, certa de estar reconhecendo um desses momentos. Sempre me engano. São sempre outros trechos que ficam, de fato, na memória afetiva como os que definiram aquela viagem.

Eu li pela primeira vez um livro de Elena Ferrante em um momento muito pouco interessante da minha vida. Antes de me comprometer com a tetralogia napolitana – à qual eu tinha certa resistência, por achar que tinha ares de chick lit –  comprei A Filha Perdida, para ver se eu me identificava com o estilo da autora. Antes de terminá-lo, já estava correndo atrás dos primeiros livros da tetralogia. Ao longo dos meses que se seguiram, eu li toda a obra da autora que conseguia encontrar.

Meu ritual de leitura consistia em almoçar muito rápido e ir até algum café perto do meu trabalho, na época, e ficar lendo até que estivesse na hora de voltar para o escritório. Alguns donos de café me detestavam – eu passava 40 minutos ocupando uma mesa e gastando cerca de 5 reais em um café. Outros me indicavam clubes do livro, me recomendavam outras leituras, ou mesmo me davam brigadeiros de brinde pela minha fidelidade. 

História do Novo Sobrenome

Há um consenso entre as fãs de Ferrante da minha bolha de que o segundo livro seja o melhor da tetralogia. E se você ainda não leu nenhum livro da tetralogia napolitana, não se preocupe, não se trata de um spoiler – mas é no segundo livro que muitos dos fatos que definirão a história das protagonistas ocorrem. E é neste ponto em que se encontra a segunda temporada da série, que estreou na HBO na segunda quinzena de março. Lila e Lenù já são adolescentes, e vivem, cada uma, de acordo a sorte que lhes foi reservada. As duas são de famílias pobres, mas enquanto uma teve o privilégio de seguir com os estudos, outra foi encorajada a casar-se “bem”.

Mas o fato é que não existe casar-se bem em um livro de Elena Ferrante. Até porque não há homens extraordinários na obra da autora. Há aqueles minimamente decentes, como Enzo Scanno, e sempre, SEMPRE há aqueles muito cultos e prolixos – normalmente, de alguma forma associados à protagonista – mas não me lembro de um exemplar masculino que tenha sido exatamente encantador. 

Eu poderia elencar vários motivos para que os amantes dos livros vejam a série produzida pela italiana RAI em parceria com a HBO. Poderia falar sobre a atuação de Gaia Girace, de 16 anos, que é quase melhor que a própria Lila dos livros. Poderia falar sobre como é incrível ver a terceira protagonista da história, Nápoles,  ganhando cores e detalhes que, apenas por meio da leitura, nem sempre são tão fáceis de serem criados com precisão histórica em nossas mentes.

Mas para mim, a melhor motivação para ver a série é ter reviver todo aqueles sentimentos enterrados desde que li os livros, em 2017. Porque o grande trunfo de Elena Ferrante é este: reacender sentimentos talvez já antigos, que a gente sequer lembrava de já ter sentido, e jogar elegantemente na nossa cara todos aqueles que temos vergonha de admitir que ainda sentimos. 

Por Julliana Bauer
27/03/2020 14h38