Pontos de Sorte.docx

Foto: Filipe Resmini/Unsplash

O zigue zague das abelhas dentro do apartamento em determinada época do ano – que apesar de ocorrer há mais de cinco anos se me perguntarem aleatoriamente quando, eu só consigo dizer que é essa época – já nem mais desperta surpresa. Até Berenice já faz pouco caso dos insetos. Se antes ficava atiçada passando as patas pelo focinho e latindo, agora é capaz da abelha pousar no nariz dela e ela nem piscar. Mas a novidade dessa temporada, que aí sim causou um certo espanto, são os besouros. Quem mandou empilhar tijolo onde antes cresciam árvores – agora a invasão é reversa. 

Os besouros, diferentemente do que você pensou quando leu a palavra besouros, são pequeninos como joaninhas, verdes e pintadinhos como algumas joaninhas, curiosos como joaninhas, mas não são joaninhas. Têm o peitoral um pouco mais desenvolvido e o corpo mais fino, em contraste com a meia bola rechonchuda e fofa da joaninha. E foi por esse formato de corpo, que eu, com todo meu conhecimento sobre insetos, convencionei chamá-los de besourinhos – mesmo não tendo nenhuma certeza de sua verdadeira definição. 

Eu coava o café na bancada da cozinha, ainda com os olhos meio abertos meio fechados, quando me deparei com um desses visitantes não convidados pela primeira vez. O besourinho andava pela superfície do vidro da janela entreaberta prendendo minha atenção em seu corpinho verde cheio de pintinhas – aquilo só poderia significar sorte.  Tomei, então, a única atitude possível diante daquela situação: no ritmo do meu sono pra não causar sustos, coloquei o dedo indicador no vidro bem no caminho do besourinho e esperei ele subir no morro do meu dedo. 

O toque das patinhas percorrendo o dedo por toda sua volta, explorando o caminho dentre as articulações em sentido à palma da mão, passeando pela linha da vida e voando quando da chegada no pulso, sempre me fascinaram. Mas esse besourinho que me dava bom dia, não quis saber de aventuras e voou pela fresta da janela.

 No correr da temporada dos visitantes, incontáveis vezes tentei fazer os besourinhos percorrerem minhas mãos. Tentei mudar de dedo, mudar da mão direita pra esquerda, até aproximar a parte da unha para ver se aquela superfície diversa causava interesse. Nada. Aqueles besouros não queriam saber de contato. Desisti, então, e me contentei em apenas observar passivamente a sorte verde que traziam. Até final de semana passado.  

A ventania e chuvarada que resfriavam o calor infernal balançaram as plantas do apê com os fluxos de ar passando pelas janelas que deixei escancaradas para aliviar o bafo. E foi aí que a invasão realmente aconteceu. Mais de trinta ou até cinquenta besourinhos tomaram a sala procurando abrigo – e aí, posso estar exagerando na quantidade, pois exageros me são difíceis de evitar. Dentre todos aqueles pontinhos de sorte que brilhavam aos meus olhos não me contive e resolvi fazer a última tentativa.

Franzindo as pálpebras, escolhi precisamente o besourinho que parecia menos desconfiado e pronto para explorar novos territórios. Deixei ele se acostumar com minha presença, e devagar, aproximei o minguinho da parede na rota do besourinho. Aquele morro de digitais seria menor para ele escalar. Naqueles segundos estáticos, trocamos olhares, percebidos obviamente só por mim, e tive certeza de nossa sintonia. Eu sentia que realmente estávamos criando uma conexão, quando o surpreendente óbvio aconteceu: ele voou para fora do apartamento rompendo com nossa recém ligação. Vou seguir apenas observando os pontos de sorte antes que eles voem todos pela janela.     

Por Raisa Gradowski
15/03/2022 18h39

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