Para Quando Me Chegue a Morte

Foto: Arquivo Pessoal

Quarta-feira, 2 de novembro de 2022. Acordo na casa do meu namorado e vejo que há quatro velas brancas sobre a mesa da sala. Pergunto a ele para que serviriam, e ele me convida a irmos juntos ao cemitério. Só então me dou conta: é Dia de Finados. Do auge do meu cinismo, aceito o convite como quem se prepara para uma excursão a um lugar exótico. Saio do apartamento com uma excitação que, contida só por respeito, de todo não condiz com a solenidade da data.

Na entrada do cemitério, começa a chover. Meu namorado me jura de pés juntos que sempre chove no Dia de Finados. Os buquês de crisântemos estão murchos, não encontram quase nenhum comprador. Padres nos oferecem seus serviços, mas passamos por eles de cabeças baixas, não sei se pela chuva, não sei se pelo embaraço de lhes termos recusado as bênçãos. Caminhamos por uma ligeira subida em via reta. A nosso redor, espalham-se de túmulos humildes a mausoléus que remetem a pirâmides maias. Como é vã a tentativa humana de, mesmo após a morte, fazer-se importante. Capricho de vivo. Aos mortos nada importa – e eles mesmos, dentro em pouco, a ninguém importarão. 

Alcançamos o cruzeiro. Pelas laterais da estrutura de alvenaria, escorre rumo a um fosso um rijo rio de parafina. Falso fluxo, inavegável Aqueronte. Velas desfeitas que, derretidas pelo fogo e endurecidas novamente pelo frio, tornam ainda a ser vela. Há pouquíssima gente ali, apenas algumas chamas resistem ao vento. De onde vem toda aquela cera? Há quanto tempo não cuidam de limpar os espólios de quem pranteia os seus mortos?

Meu namorado acende uma vela e faz preces por quem morreu cedo demais. Só consigo consolá-lo às avessas: “ela está melhor do que a gente”. Voltamos. Ele me conta do furto generalizado das placas de bronze e de latão que guarnecem os túmulos. Acontece em todo o país. Não me surpreendo tanto quanto deveria. Uma mulher de meia idade surge do nada e nos pergunta se aceitaríamos um folhetinho sobre Finados. Meu namorado leva um susto e brinca: achou que fosse a própria morte a vir buscá-lo. Não era, era uma fiel adventista do sétimo dia. Eu recebo o seu folheto e, dele, estudo com atenção uma série de equações matemáticas. Pó + Fôlego = Alma. Corpo + Vida = Pessoa Viva. Pessoa Viva = Alma. Pó – Espírito = Pessoa Morta. Como pode ser leviana a nossa existência. Como pode ser confortável. Fico triste porque sei que nunca serei assim.

Na saída do cemitério, um padre de expressão contrita impõe mãos sobre uma família enlutada. Do lado de fora, abro a carteira para dar dinheiro ao rapaz que vigia os veículos estacionados. Só tenho uma nota de cinco, acho dinheiro demais. Eu e meu namorado conseguimos entrar no carro com discrição, o mocinho não nos percebe. Acho que ganhei o jogo, mas, num último instante, meu olhar cruza com o dele. Perdi. Só gente viva sente culpa pelas próprias mesquinharias. 

Meu carma é imediato. Ao guardar de volta o dinheiro na carteira, dou de cara com o papel amarelado: “Nunca vivi um dia do qual eu gostasse inteiramente, mas não desisto de procurar a felicidade. Amanhã, eu espero o sol”. Foi minha avó quem me deu o recorte de jornal que levo sempre comigo. Padeço de uma particular insensibilidade com a morte, mas só porque não a conheço de perto. Sou privilegiadíssimo em matéria fúnebre. Minha avó ainda vive. Minha mãe, meu pai, minha irmã. E sei que, por mais que eu teime em pensar o contrário, não será para sempre.

Não conheço a morte de perto e, desconfio, não tenho preparo algum para isso. Quando a indesejada das gentes chegar, encontrará abandonados os campos, a casa cheia de pelos de gato, a mesa com uma ou duas (ou três) marmitas, as coisas todas fora de lugar. Não haverá velas para velar meus mortos, não haverá sacerdotes a me confortar o espírito, não haverá panfletos a me deslindar o mistério da vida. Alô, iniludível!, espero que ainda demore muito a me visitar.

Por Pedro Jucá
08/11/2022 16h14

Artigos Relacionados

Na Toca do Coelho

Voltar a uma Antiga Morada