O Tanso.docx

Na sincronia das badaladas do relógio batendo nove horas, pedaços desiguais de miolo e casca de pão francês adormecido, com e sem gergelim – e em uns dias atípicos, resto de massa de pizza de micro-ondas – são atirados ao lago em meio ao coqueiral, estreando o primeiro ato do dia do espetáculo da dança dos peixes.  

Como se em um verdadeiro palco, os peixes dançarinos e acrobatas se lançam, nos mais agudos e graves ângulos, buscando o petisco humano boiando nas margens. A cada movimento dos artistas aquáticos, com direito a saltos e pulos para a superfície, as águas bailam em ondas e o sol, dirigindo a iluminação, faz raios refletirem sobre as escamas e marolas. 

Dentre todos os personagens, de diferentes tamanhos, figurinos e, provavelmente, espécies, um protagoniza – o Tanso. O protagonismo do Tanso se justificou inicialmente apenas pela quebra do ditado “tamanho não é documento”, pois se não fossem suas dezenas de gramas a mais do que seus companheiros, passaria como um mero figurante do show. 

Tanso era tão maior que alguns nadadores, que poderia facilmente engoli-los em uma bocada – como a baleia que abocanhou o Pinóquio, ou a outra que abocanhou aquelas duas senhoras de caiaque, no Canadá ou algo que o valha. Também não tinha problemas de locomoção passíveis de justificar sua ineficiência. À principio, o problema do tanso era tansisse – da pura. As migalhas de pão, praticamente colocadas em sua frente, sempre eram roubadas por outros peixes famintos à sua volta. 

As teorias e hipóteses antes de sua nomeação foram várias. Seria o tanso cego? Mas não. Pois ele nadava até o pedaço de massa-  via o fluxo e seguia o caminho até a recompensa. Até poderia se cogitar de que seus movimentos eram iniciados apenas por sentir a multidão de seus colegas vibrando na mesma direção, se não fosse por certa vez que o olhei nos olhos. Após criticá-lo por não conseguir comer o petisco, ele me retornou um olhar fulminante de “olha como fala comigo”. Nesse dia tive certeza da sua capacidade de enxergar, de tão fundo que olhou para minhas pupilas retraídas pela luz solar.  

A outra alternativa é que o Tanso fosse a mãe daquela cambada toda de peixes, ou pelo menos de parte dela. Mas não. A suposta mãe chegava a quase cheirar o pedaço de pão ou pizza boiando e amolecendo na água, mas antes de abrir a boca o petisco já desaparecia de seu alcance. Se mãe fosse, por que iria quase comer para depois não comer? Ficaria, desde o momento que o petisco caísse na água, apenas observando seus peixes filhotes disputando comida, ou não daria à mínima e comeria do mesmo jeito. Mas não iria quase comer e de repente baixar uma crise de moral e consciência e deixar seus filhotes se alimentarem antes dela mesmo.

Até que um dia, quando o cardápio do jantar da noite anterior tinha sido pão com pernil, não sobrando nem uma fibra de pernil ou uma metadinha de um pão para alimentar os peixes, mantendo o espetáculo em cartaz, o petisco jogado foi mamão ao invés de uma massinha inocente. Tão logo os pedaços distribuídos e jogados pelo lago atingiram a água, Tanso passou de um ponto ao outro, em uma velocidade surpreendente, comendo todos os pedaços de mamão – quase como mordendo a fruta inteira. Explicado o problema de Tanso, mais uma vítima dos problemas de saúde em alta de nossa sociedade – intolerância a glúten.

Por Rai Gradowski
07/09/2021 11h37