Mão na massa.docx

foto: Canva
foto: Canva

— É tipo sovar massa de pão. Já fez pão? — a profa diz colocando um quilo e meio de argila tabaco na mesa alta em minha frente.

— Só pão de queijo. Congelado.

Ela me mostra a manha e eu pego o bolo de argila e aperto contra a mesa fazendo força, como quem não sabe que é jeito. A argila fria transpassa entre os dedos e demoro pra captar o esquema. Talvez (inconscientemente) de propósito. Pra profa ficar com pena da falta de destreza e considerando que tenho cinquenta sovadas pela frente, terminar pra mim o ciclo de amassos.

Eu sempre curti usar as mãos. Lá nos primórdios, as mãos eram ferramentas de trabalho pra misturar reagentes, pesar amostra, manipular ratos e camundongos.

Depois veio um longo (e presente) tempo de deixar de usar a totalidade das mãos. Os dedos se atirando suicidas e barulhentos contra quadradinhos do teclado resumem minhas horas de trabalho, oficial e extraoficial. Mas não as mãos. Não as palmas das mãos.

Então quando eu cheguei na aula de cerâmica e enfiei a mão na massa de argila, a taxa dopamina atingiu um pico. Já de primeira saí apaixonada e com uma sacola perigosa da cota de argila que eu deveria guardar em casa e trazer pra usar na próxima aula.

Eu sabia que não iria resistir. E nem tentei.

No domingo seguinte quando S. jogada no sofá queria apenas seguir descansando ao som anestesiante da tevê e (ainda na época) as fofocas aleatórias do Twitter-X, eu peguei a sacola de argila.

Forrei a mesa com a toalha de fazer arte e comecei a garimpar pela casa objetos que pudesse usar de instrumentos. Uma garrafa de Original de 600mL pra abrir a argila; quatro capas de CDs pra usar de guia; a carteirinha da OAB pra alisar a peça. Vesti meu jaleco que já esteve respingado de químicos e hoje é manchado de tinta. Ao lado do potinho com água, meu copo de cerveja vezes temperando a massa.

  Convenci S. a desligar a tevê e botei Otto pra cantar alto. Sovei a argila com certeza menos de cinquenta vezes (porque não lembro sequer de pensar sobre números nesse momento) e passei a tarde ali me entretendo.

A peça teria ficado legal. Um copinho. Bem feito, até. Mas num momento de preciso fazer alguma coisa diferente aqui com um palito de dente desenhei na argila uma carinha bastante tosca, até pros meus parâmetros. Dois riscos de olhos e uma boca com língua pra fora. Tipo assim = P

Cheguei na aula chateada com o resultado e a teacher me salvou. Molha, esponja com água, raspa. Tchau carinha tosca. Virou um mini caneco colorido de chope. Que uso pra tomar água (pois mini).

O bacana da argila é que ela pode ser imune aos meus excessos. Ela se transforma, e transforma.

Por Rai Gradowski
05/09/2024 09h26

Artigos Relacionados

SUPERSTIÇÕES.docx

Dulviv.docx