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Foto: Reprodução/Pixabay

O ponto branco faiscando no chão da varanda franziu minha testa. Lá fora, o nevoeiro encobria o topo das árvores e não se via muito além da casa do outro lado da rua. Encolhida na poltrona com a manta até a cintura, com meias de lã grossa como pantufas prendendo a barra da calça de moletom e o capuz do casaco enfiado na cabeça, eu tomava o café que esfriava antes de chegar à boca. Não demorei para fantasiar ser aquele ponto um floco de neve escapado por alguma fresta. Em mais um gole, espantei minha imaginação sonolenta e andei para o inverno da varanda. Uma flor jazia no piso gelado.

Cinco pétalas de um branco cintilante com o núcleo preto quase roxo. De uma ponta a outra, era menor que um isqueiro daqueles minis. Em perfeito estado, como se ainda estivesse conectada aos ramos verdes da trepadeira que se contorciam pela parede, provavelmente dera seu último suspiro na madrugada. Esfregando as pétalas entre o indicador e o dedão, ao toque era como uma macia e finíssima seda. 

De imediato, querendo conservar a memória daquela sutileza perfeita, meti a flor entre as páginas de pontas dobradas do segundo livro da mesinha da sala – o que estava mais embaixo e eu relia há alguns dias. 

Eu queria dizer aqui que escolhi minuciosamente entre quais linhas a pequena flor ressecaria, mas seria uma mentira descarada demais. Foi só tempo depois, para escrever esse texto, que busquei as páginas que a guardavam. Entre a setenta e dois e a setenta e três, a flor já murcha deitava sobre linhas fortes de um dolorido fim. Acaso ou não, ela também teve seu ciclo encerrado.

Horas mais tarde, enquanto rodava na cadeira do escritório de um lado para o outro em um enrola-enrola eterno para pegar no tranco e começar a cumprir os Oks do dia, freei com as pontas dos pés a cadeira em frente à estante de livros. Será que tinha ali eternizada mais alguma flor? E se tivesse, será que eu lembraria do momento em que a guardei? 

Peguei um livro bem do meio da estante e folheei suas páginas. Nada. O segundo. Nada. Terceiro. Quarto. Vigésimo primeiro. Nada. Desistindo daquela procrastinação que já também me entediava, voltei para a mesa e dentre os livros ali espalhados, não resisti a uma última tentativa. 

Era um calhamaço de capa dura – livro técnico de plantas medicinais no Brasil lá dos tempos que se revelava fotos da faculdade. E lá estava ela, uma mini rosa bordô deixava resquícios de sua tinta entre a erva-cidreira e o capim-de-contas. Dessa vez, nenhuma relação com o texto, a não ser: plantas. 

Desfoquei meus olhos da realidade tentando lembrar quando coloquei aquela flor ali. Se foi em 2007 (como escrito na primeira página junto à minha assinatura), se foi mês passado (a julgar pelo estado da flor, coloco aí no mínimo um mês), não tenho a menor ideia. 

Nenhuma memória. Lembrança. Nada. Mas mesmo sem recordações específicas do momento que pus a mini rosa entre as páginas, um sorriso abriu espontâneo em meu rosto e fechei o livro feliz – sou uma pessoa que guarda flores.

Por Raisa Gradowski
07/06/2022 19h08

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