Dos gatilhos da nostalgia

Lembro de todo o frisson que rolou quando o live action de A Bela e a Fera foi anunciado, quase um ano e meio antes de sua estreia oficial. Era meu desenho preferido da infância, que me fazia protagonizar cenas de choro (e broncas) na videolocadora caso o VHS tivesse sido locado para outra criança. Quando a versão com Emma Watson finalmente estreou, saí da sala de cinema quase entediada o remake não me despertou a nostalgia da infância. Embora eu seja uma vítima fácil de gatilhos de marketing que levam à memórias da infância,  concluí que talvez esse tipo específico de nostalgia não surtisse tanto efeito em mim. Paciência.

É claro que a Bela e a Fera não foi a primeira referência da infância de toda uma geração a ser resgatada por Hollywood – mas foi a primeira a me atrair para as salas de cinema. A reciclagem do clássico da Disney bateu o recorde de bilheteria no ano de seu lançamento: foi o segundo filme mais visto de 2017, abrindo portas para um pacotão de live actions que vêm transformando 2019 em um verdadeiro túnel do tempo.

Nos últimos anos, até mesmo séries como Gilmore Girls e Três é Demais foram ressuscitadas, e pudemos nos deparar com uma Rory Gilmore que quebrava o estereótipo de garota prodígio que foi construído ao longo de todos os anos que a acompanhamos. A formanda certinha que terminou a produção original rumo a uma carreira promissora, voltou pela Netflix desempregada e correndo atrás de freelas ingratos para pagar os boletos. Às vezes a nostalgia encontra a vida real.

Mas em meio a tantas novas produções estreando a cada semana, o que explica o nosso desejo de resgatar as obras do passado? A escritora russa Svetlana Boym destrinchou a nostalgia ao longo de sua carreira, abordando especificamente a relação entre este sentimento e a modernidade. “A nostalgia é um sentimento de perda e deslocamento, mas é também o romance de alguém com a própria fantasia”, definiu a autora no ensaio The Future of Nostalgia. Não é bonito?

Ela também descreve um breve histórico de como a humanidade lida com esse sentimento. No século XVII muito antes de ser desencadeado por desenhos animados   era considerado um mal passível de cura, como um resfriado, e médicos europeus acreditavam que soluções como o ópio, sanguessugas e viagem aos Alpes Suíços poderiam dar cabo de seus principais sintomas. Não que uma viagem aos alpes não caísse bem a todos nós, mas sentar e ver um filme de uma hora e meia me parece uma opção mais econômica e menos dolorosa que as sanguessugas.

Há quem acuse escapismo nessa tendência. A própria autora russa toca nesse ponto, ao afirmar que a nostalgia inevitavelmente surge como um mecanismo de defesa em momentos de  mudanças históricas. Faz sentido. Para alguns, talvez, resgatar os filmes preferidos da infância represente algo bem mais corriqueiro, como um desejo de reviver, ainda que por algumas horas, um tempo mais simples. Afinal, quem na infância se preocupava com política, crise ambiental ou em agendar o pagamento do boleto do condomínio? 

Para a nossa sorte, a nostalgia é experienciada de formas diferentes por cada um de nós. Ela é doce e por vezes cafona, e seus gatilhos são inúmeros e vão muito além de referências da cultura pop. Se a volta de Sandy e Junior e os live actions da Disney não me comovem, experimente me colocar diante de fotos, pratos, ou mesmo brinquedos bestas que me marcaram a infância. 

Esses tempos convenci a minha avó a me dar um jogo de xícaras em que eu tomava café com leite sempre que a visitava nas férias de julho. É um jogo simples, que pode ser encontrado ainda hoje em lojas de departamentos, mas um gole de café naquelas xícaras azuis já me causa uma chuva de memórias que deixam as madeleines de Proust no chinelo. 

Por mais bem resolvidos que sejamos com a vida adulta, encontrar nosso gatilho pessoal para a nostalgia é um exercício bonito e talvez um pouco doloroso — mas, principalmente, essencial para que ela não nos pegue desprevenidos. 

Por Julliana Bauer
20/12/2019 11h00