Crítica: “Ainda Estou Aqui” traz sensibilidade ao lidar com memória da ditadura

Ainda Estou Aqui. Foto: Divulgação.
Foto: Divulgação

Ali estava a verdadeira heroína da família”, escreveu Marcelo Rubens Paiva sobre a mãe no livro autobiográfico que inspirou o filme “Ainda Estou Aqui”. O longa-metragem de Walter Salles, que estreia nesta quinta-feira (07/11) no Brasil, centraliza sua narrativa nas forças e contradições de Eunice para contar uma potente narrativa. É do ponto de vista dela – e da interpretação fantástica de Fernanda Torres – que acompanhamos o drama familiar de quem perde um parente para a ditadura.

O filme acompanha a família do ex-deputado Rubens Paiva (Selton Mello) em 1971. Eunice repara nos movimentos estranhos do marido ao mesmo tempo em que nota o quanto os militares estão cada vez mais presentes no seu cotidiano. Rubens Paiva, que já tinha perdido seu mandato quando se instalou a ditadura no Brasil, em 1964, discute com amigos estratégias de resistência. A porta do escritório é fechada, mas não trancada. Ele mantém certo afastamento, mas sempre como um convite – tanto que uma das filhas passa a se juntar nas reuniões.

A mãe de cinco filhos tenta se manter afastada desse lado da vida do marido. Mas nem isso é o suficiente. Logo depois de representantes do exército invadirem sua casa e levarem Rubens Paiva, ela e uma das filhas também são levadas.

Incerteza

O clima de dúvida que ronda a vida de Eunice chega de vez. Encapuzada, separada da filha, fica dias encarcerada pelo exército, sendo questionada. Daqui em diante, não há mais nenhuma certeza para ela. Quando finalmente é liberada, sem saber o que aconteceu com filha ou marido, só pode voltar para casa. Lá, toma uma decisão.

Não divide com os filhos suas incertezas. Não sabe se o marido voltará, nem para onde foi. A insistência de Marcelo, Eliana, Nalu e Beatriz, e até de Vera, morando no exterior, em saber o que está acontecendo, é praticamente ignorada. Walter Salles nos coloca naquela sala de casa, que pouco antes era uma festa, com vários amigos e sem trancas, e que agora é um poço de dúvidas e segredos. Eunice tenta manter a positividade enquanto precisa lidar com a falta de dinheiro, com a perseguição dos militares e com a dor dos filhos em não saber do pai.

A mãe não pode confirmar o que não sabe. E Eunice não sabe muito. “Ainda Estou Aqui” retrata uma dor que foi sentida por tantos brasileiros, especialmente nos anos 1970 quando a ditadura começou a acirrar a procura por subversivos e trazer métodos mais violentos de tortura. O tom das cores e luzes do filme resgata o contexto histórico, ao mesmo tempo em que nos coloca num lugar de sentir desconforto num espaço que deveria ser de aconchego. A cena em que, dentro do carro, Vera insiste em saber o que aconteceu com a família enquanto esteve fora, e Eunice pede silêncio, aumentando o volume do rádio, e o carro saindo do sol direto para a sombra, tem uma força simbólica marcante.

Filmes sobre ditadura

O Brasil vem tratando sobre os horrores do período da ditadura há algum tempo. Inclusive, Fernanda Torres estrela um deles: “O Que É Isso, Companheiro?”, de 1997. Salles encontra no livro de Marcelo Rubens Paiva mais uma forma, inovadora, de mostrar o quanto as pessoas, mesmo que não se envolvessem em resistência ao regime, eram afetadas. Rubens Paiva e os amigos não eram guerrilheiros armados, mas tentavam ajudar exilados, por vezes mandando cartas para famílias de pessoas que foram obrigadas a deixar o Brasil. Eunice nem sabia disso. Ainda assim, foi presa, perdeu o marido e isso causou um trauma familiar de décadas.

O exército se recusava a admitir que tinha sumido com Rubens Paiva. Até depois do fim da ditadura, Eunice continuou brigando pelo direito de ter uma certidão de óbito. Fica intensa, na parte final do filme, a discussão sobre não anistiar criminosos da ditadura e nem esquecer os horrores vividos. Em tempos de ascensão da extrema-direita pelo mundo, é uma mensagem marcante.

Memória

O filme relembra que os representantes do exército não foram responsabilizados pelas mortes e torturas daquela época, ainda que identificados. “Ainda Estou Aqui” usa fatos históricos que, se não são de conhecimento geral, deveriam ser, e adiciona a dor da família, intensificando seu significado. A incerteza que corrói Eunice, sua tentativa frustrada de proteger os filhos da verdade enquanto corre atrás dela, o sofrimento de se sentir sozinha, tudo é costurado de forma brilhante e única.

O livro abre com a discussão sobre memória, que fica mais clara no final do filme. Mas ao longo das pouco mais de duas horas, essa questão é construída de forma cada vez mais intensa. E a mãe aparece como essa figura detentora da memória da família, mas que precisa passá-la adiante, de forma honesta. A estética corrobora com essa busca pela memória, não apenas pessoal, mas de um país que viveu uma ditadura e precisa corrigir os erros do passado. A sensibilidade do roteiro, das interpretações e da visão apurada de Salles para luzes e sombras e enquadramentos entregam um filme poderoso, que ressoa por muito tempo depois de assistido. “Ainda Estou Aqui” não só discute memória como tem potencial de ser parte da memória do cinema brasileiro.

Por Brunow Camman
05/11/2024 09h00

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