Carta (sonho nº 1)

Foto: Canva

Ao som de “Prece”, 

de Alberto Nepomuceno

Só depois do primeiro estrondo percebo que, além de mim, ninguém mais caminha pela larguíssima avenida da cidade. 

Estou sozinho. 

Demoro a entender de onde veio o som tenebroso: um dos prédios súbito se parte ao meio. 

Depois se esfacela em partes menores, andares que viram apartamentos, apartamentos que viram quartos, quartos que viram camas, camas que viram lençóis, lençóis que viram fios que se destecem até a mais diminuta intimidade do sonho de alguém. 

A matéria toda sobe, sólida ainda, deferente às leis que comandam o fluxo universal de toda a matéria. Tijolos evanescem numa areia fina, vidros rutilam como gemas celestiais – tudo orbita. 

Um segundo estrondo, um segundo prédio. 

Sinto medo porque recordo que, no terceiro andar do terceiro prédio, sob uma colcha de linho e lã, você dorme. De repente sei – sei com o saber de um recém-nascido, que, depauperado de futuro, não pode outra coisa senão saber –, sei que não vou alcançar você a tempo. Do bolso, tiro um papel e uma caneta para escrever minha despedida.

Um terceiro estrondo. 

Nenhum outro prédio se desintegra. 

Com tardar travoso, me dou conta de que, cosmo acima, quem (se) parte sou eu, tripas volitantes, ossos como runas inúteis que saudade alguma logrará traduzir. 

Sem palavra ou destino, minha carta vazia flutua em pleno ar.

Por Pedro Jucá
14/11/2023 13h17

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