Todo Tango Tem Sotaque

Foto: Canva

“Pedro e P.?”, o motorista chama a mim e a meu namorado pelo primeiro nome. É um rapaz de brinco na orelha que, à moda de 89,46% dos homens argentinos com menos de trinta anos, usa o tal do corte moicano disfarçado. Mal nos vê e, de cara, já recorre ao bueno e vielho portunhol para estabelecer a comunicação, interrogando se estamos bem e nos apontando qual assento ocupar. Estou a ingenuamente me perguntar como teria ele adivinhado nossa nacionalidade quando entramos na van e, em poucos segundos, descobrimos a razão: é em português que ressoa o brado retumbante de passageiros conversando em alto e bom e despudorado som. Todos, absolutamente todos ali são brasileiros.

Eu e meu namorado nos acomodamos, colocamos o cinto e nos preparamos para a viagem. Os prédios vão diminuindo, o comércio se esparsa, os transeuntes somem na sombra – a cidade se rarefaz. O percurso, pelo visto, é longo. Longo. Muito longo. Ainda um pouco mais. Quilômetros e quilômetros transcorridos, a senhora à minha frente recebe uma ligação preocupada da agência, indagando por que ela e o esposo não teriam embarcado no veículo que haviam reservado. Agarro a mão de P. e arregalo os olhos: que van é essa em que estamos, afinal? Será, meu deus, que eu me taquei do Brasil para ser sequestrado em plena Buenos Aires?

O bom de ser dramático é que estar errado traz sempre motivo de comemoração. Quase uma hora depois, as dezenas de ônibus parados, de onde afluem dúzias de pessoas vestidas a caráter, atestam que não, não fui sequestrado, nem terei meus órgãos traficados América do Sul afora. Estamos livres de perigo – ou quase.  Logo percebo que a tensão em meus trapézios se dissolveu um pouco cedo demais. Assim que descemos da van e, em fila indiana, marchamos para dentro do grande galpão que abrigará o show, deparamos com uma imensa fotografia emoldurada em dourado, aliás a única do local. Nela, o dono do estabelecimento posa com… Hebe. Não, não a deusa da mitologia grega. Sim, a Hebe. A nossa Hebe. Hebe Camargo. Ele, com olhar de fumaça, boca entreaberta e bigodinho fino; ela, com suas memoráveis joias e um vertiginoso topete loiro; ambos, como não poderia deixar de ser, forjando um passo de tango.

A programação da noite é extensa. Primeiro, um jantar com entrada, prato principal, sobremesa e, contadinha, meia garrafa de vinho por jantante. Em seguida, um espetáculo de tango, dança e música, que haverá de durar quase duas horas. De início, somos tangidos, digo, encaminhados à mesa que compartilharemos com mais doze consortes – na verdade, dez, pois dois colegas faltaram. Com isso, que sorte!, ganhamos alguns centímetros de espaço e podemos até nos dar ao luxo de girar o corpo em um ângulo de 30 graus para cada lado.  

Estamos em cinco casais. Oito brasileiros e dois estrangeiros. Quer dizer, pressuponho que sejam estrangeiros, pois interagem exclusivamente por meio de vagos acenos de cabeça, postura que eu e P., exaustos, ensaiamos mimetizar, para ver se escapamos da obrigação infernal de atravessar a próxima hora distribuindo sorrisos e papeando com estranhos que, de outra forma, não faríamos a menor questão de conhecer.

É inútil. 

Do lado oposto da roda, um homem grita, balançando o indicador erguido no ar, com ares de diretor de elenco de televisão: “mas e vocês? São de onde?!”. Ele domina a reunião. Tem, talvez, quase sessenta anos. Cabelo ralo, rosto limpo de barba, rugas que indisfarçáveis plásticas ajudam a disfarçar. Se veste inteiro de preto e ostenta um ou dois (ou três) colares de ouro no pescoço. Fala com enunciação de locutor sobre as inúmeras viagens que fez ao redor do mundo, gesticula com espalhafato e traz, a tiracolo, um namorado quinze ou vinte (ou trinta) anos mais novo. 

Numa última tentativa de sair pela tangente, tomo mão do meu tom mais polidamente desinteressado e, sem estabelecer contato visual, respondo que somos do Brasil. Ele não se dá por satisfeito e, como quem exige que agora demos uma voltinha para uma avaliação completa do produto, rebate: “Sim, mas de onde?”. 

Pronto, tarde demais, fomos arrastados para dentro da conversa, e acho que sei o que me espera.

Quando descobre de onde viemos, o homem exagera uma expressão de surpresa e une as mãos ao modo de quem ora diante de uma aparição: “nossa, mas você não tem nem cara do povo de lá, né?”. Povo de lá. Engulo em seco, inclino a cabeça como um cãozinho desentendido e, me fazendo de doido para melhor passar – pelo visto, além de longa, a noite será muito, muito divertida –, devolvo um “como assim? O povo de lá tem que cara?”.

Ele não se digna a responder. Talvez não tenha nem ouvido minha provocação. De minha parte, tento seguir com a noite. Garçons atravessam corredores arrastando carrinhos apinhados de centenas de pratos. Os lugares vazios do salão vão sendo preenchidos. Uma senhora tropeça ao se levantar. Minha vizinha de assento me confidencia que amava seu cachorro, mas não suportava que, com seu cheiro fétido e sua baba gosmenta, ele sequer entrasse em casa. Há mesmo, nesse mundo, formas muito diversas de amor.

“Ô, Fortaleza!”, e eu estremeço. Sim, é ele, a mesma beldade de instantes atrás, a me interpelar numa metonímia que faria até nossos tios mais conservadores se retorcerem sobre a cadeira. Mas estou afiado: “Pois não, M.?”, devolvo na lata, e ele ri, de ego insuflado, achando que registrei o nome da cidade onde nasceu por generosidade, e não por estratégia de guerra.

Ele continua: “mas você trabalha com o que mesmo?”. Estou tão incrédulo, tão pasmado, tão abismado, que me engasgo com um naco da sempre tão nobre quanto insossa carne portenha. Meu namorado cai na gargalhada. “Servidor Público”, devolvo, na intenção de, sonegando informações nevrálgicas a meu respeito, sair de fininho daquela enrascada. 

Mas o quarto cavaleiro do apocalipse está prestes a ser liberado. Enquanto beberica do vinho – eu poderia jurar que com um mindinho em riste –, ele começa a discorrer longamente sobre como era impressionante eu sair de , onde, como era de comum sabença, os concursos eram imensamente mais fáceis, para alcançar uma aprovação num concurso do Sul do país, terra de gente tão brilhante, tão trabalhadora.

Eu ainda busco, por um minuto ou dois, repintar a fama do povo de lá, mencionando o número de aprovados anuais em provas do ITA/IME e o bordão nacionalmente reproduzido de “quer passar num concurso? Mate um cearense”, mas me lembro da lição de Vinícius, O Homem que Diz “Sou” Não É, e, estando eu seguríssimo de ser eu quem sou, me calo.

A noite se estica, as cortinas do show, extasiante, se abrem e se fecham, a plateia vai escoando para fora do recinto. Nesse momento, vejo o dito cujo se esgueirando pela multidão, quase empurrando pessoas, no esforço de nos alcançar. Aproxima-se e, com um olhar que não vou conseguir descrever aqui – um olhar doce, sonhador, pungente, elegíaco, reverencial –, finaliza sua aparição em minha vida com um “você e seu namorado combinam demais”.

Retribuo o olhar e vejo-o ali, um senhorzinho miúdo, frágil, vestindo preto e ouro como quem se orna de armadura, portando, como a um escudo, um passado de dores e preconceitos que eu nunca vou poder acessar. O jovem a seu lado, com quem, ao longo da noite inteira, não trocou uma carícia – mal uma palavra –, vai longe, não o segue nem o guia no caminho de volta para casa. Então eu entendo. Nada justifica, mas eu entendo. Agradeço com um balanço de cabeça, dou a mão a P. e, juntos, em público e sem medo, retornamos ao hotel.

Por Pedro Jucá
31/10/2023 10h43

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