Cidade Maravilhosa, Cidade da Garoa, Cidade Sorriso ou Modelo, o nome pouco importa: a carne mais marcada pela violência do Estado é sempre a mesma.
[…]
João Pedro Mattos Pinto, 14 anos.
Igor Rocha Ramos, 16 anos.
Guilherme Guedes, 15 anos.
Claudia da Silva Ferreira, 38 anos.
Ágatha Félix, 08 anos.
Kathlen Romeu, 24 anos.
Amarildo de Souza, 43 anos.
*Weliton Luiz Maganha, 30 anos.
João Alberto Silveira Freitas, 40 anos.
Ketellen Gomes, 05 anos.
Emily Victoria da Silva, 4 anos.
Rebecca Beatriz Rodrigues Santos, 7 anos.
*Renato de Almeida Freitas Junior, 37 anos.
Anderson Gomes, 38 anos.
Marielle Franco, 38 anos.
[…]
No meu primeiro texto, falei um pouco sobre estereótipos, racismo estrutural, e sobre a necessidade de ampliar a nossa visão sobre o outro, sobre o mundo, e sobre o perigo de visões unilaterais sobre culturas, histórias e, obviamente, sobre pessoas.
Neste segundo, a ideia inicial era falar um pouco sobre o continente africano antes do processo de colonização, das perspectivas nativas e não europeia, a história do ponto de vista do colonizado, e não do colonizador. O texto estava pronto, só enviar pra publicação, mas não por acaso, alguns fatos ocorridos nas últimas semanas me fizeram mudar um pouco a ordem das coisas.
No último dia 04, uma quarta-feira, acesso uma das minhas redes sociais e acompanho, quase que em tempo real, a abordagem – e posterior prisão – do Vereador Renato Freitas (PT). Por meio desta mesma rede social, a Assessoria de Comunicação do Mandato do Vereador disse, através de nota, que o vereador questionou o método (da abordagem), que é corriqueiramente aplicado pela Polícia Militar, motivo pelo qual deu-se a prisão. A abordagem ocorreu na Praça 29 de Março, região central da cidade, em um momento de descontração, enquanto Renato e outros jovens jogavam basquete e ouviam rap com uma caixa de som.
Sob a justificativa de “perturbação sonora”, Renato e mais um amigo foram levados à 1ª Companhia do 12º Batalhão de Polícia Militar, onde permaneceram por cerca de 4 horas. Outras pessoas que também estavam no local filmando e registrando a cena, foram obrigadas a mostrar documentação e questionaram o porquê dessa exigência.
Após ser liberado, o vereador deu entrevista e ressaltou as informações antecipadas por meio de nota. Além disso, reforçou o uso de violência por parte da PM e o racismo, que faz com que pessoas como ele não tenham a cara do cartão-postal de Curitiba. Essas e outras informações podem ser acessadas no perfil de Renato e no site do partido ao qual pertence, o PT.
No dia 07, o vereador fez uma live, cujo título era A CURITIBA QUE NÃO ESTÁ NA VITRINE: Racismo, higienismo e violência Policial, onde, de forma clara e tranquila, expressa a sua revolta com esse episódio, além de contar uma série de outras abordagens e histórias pelas quais já passou enquanto vítima de racismo e outras violências, tudo isso ao som do bom e velho rap nacional e com a imagem de Mauro Mateus dos Santos – mais conhecido como Sabotage – como pano de fundo do cenário. Se você realmente acha que vive em uma cidade modelo, te convido a ver a live e pensar: modelo pra quem?
Números demonstram que a violência policial tem gênero e cor: será?
Os números, de fato, trazem indicadores importantes. Segundo o anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), com relação a 2018, houve um crescimento de 3,2% no número de mortos devido às ações policiais.
Esse monitoramento passou a ser realizado em 2013, desde então, foi registrado um aumento de 188,2% no número de casos de violência policial registrados. Em 2019, 13% das mortes violentas registradas no país são resultados desse tipo de ação, atingindo o maior índice no número de mortes no indicador durante esse período.
No Rio de Janeiro, 30,03% das mortes violentas e intencionais registradas foram causadas pelas forças policiais civis e militares. Rio de Janeiro e São Paulo correspondem, respectivamente, a 1.810 e 867 mortes por intervenções de policiais civis e militares no último ano, o que representa 42% de toda a letalidade registrada nacionalmente.
Ainda segundo o Anuário, os estados do Amapá, seguido do Rio de Janeiro, concentram a maior taxa de mortalidade por intervenção policial. Samira Bueno, socióloga e diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, classifica como “obsceno” o índice de letalidade dos casos. Segundo ela, “isso é um número que ultrapassa qualquer parâmetro internacional em relação ao uso da força policial. Mostra claramente o uso abusivo da força por parte das nossas polícias”.
Os números analisados pela FBSP são baseados nos boletins de ocorrência recebidos das Secretarias de Segurança Pública e/ou Defesa Social por cada um dos estados e permitem traçar um perfil das vítimas desse tipo de violência.
A taxa de mortalidade entre pessoas negras em decorrência de intervenções policiais é de 183,2% superior à taxa entre brancos. Entre brancos, a taxa é de 1,5 por 100 mil habitantes, entre negros o número sobe para 4,2 sendo comparada pela mesma proporção de habitantes.
O estudo traz uma reflexão extremamente importante e aponta a importância do papel social e da não-isenção frente às situações desse tipo de ação, que é a importância de registros desses casos […] casos recentes como o de George Floyd e tantos outros no Brasil evidenciam a importância que pessoas, movimentos e redes sociais têm feito na responsabilização de agentes e instituições policiais, sobretudo ao registrarem em vídeo, ações com uso abusivo ou ilegal da força por parte de policiais. Esse controle “social” da atividade policial tem oferecido importantes oportunidades de reflexão e revisão sobre os sentidos da atuação policial contemporânea quando esta resulta em insegurança e desigualdade.
Números, dados e estatísticas confirmam a hipótese: sim, tem gênero e cor – PRETA!
Em 2016, foi apresentado o relatório final da CPI do Assassinato de Jovens. Criada para investigar o assassinato de jovens da população brasileira, a CPI apurou que o verdadeiro massacre que vitima meninos e meninas se concentra na juventude negra, vítima principalmente da ação e inação do Estado brasileiro. Anualmente, 23.100 jovens negros de 15 a 29 anos são assassinados no Brasil. 63 por dia. 1 a cada 23 minutos.
Na ocasião, em entrevista concedida à BBC, Lindbergh Farias diz que “o principal destaque da CPI foi reconhecer aquilo que os movimentos negros, sobretudo de jovens, vêm dizendo há muito tempo: um verdadeiro genocídio da nossa juventude negra. A cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no Brasil. Isso equivale à queda de mais de 150 jatos, cheios de jovens negros, todos os anos. Genocídio da população negra é a expressão que melhor se enquadra à realidade atual do Brasil”.
No relatório, além de números, é apresentado uma lista com os nomes das mães dos jovens assassinados e que foram ouvidas durante a CPI, e os nomes, idade, e as circunstâncias em que ocorram os crimes contra os adolescentes, fato que corrobora com certa humanização dos casos apresentados: não são apenas números, são pessoas! Pessoas com histórias que foram interrompidas por uma força policial desmedida, despreparada e cruel.
Vítor Santiago é um dos jovens que fazem parte dessa estatística, seu caso é um dos que compõem o relatório final da CPI. Vítor foi ferido no dia 12 de fevereiro de 2015, no Complexo da Maré, Zona Norte do Rio de Janeiro. Levou dois tiros de fuzil 762: um perfurou a sua perna esquerda, que teve que ser amputada; o outro atingiu o tórax, lesionando seu pulmão e atingindo a medula. Desde então é paraplégico e possui necessidade de cuidados especiais para se manter vivo.
Vítor trabalhava como estoquista, estudava e estava prestes a concluir seu curso em novembro de 2015. Os tiros que o atingiram foram disparados por militares durante a ocupação da Maré pela Força de Pacificação. O Estado foi ineficiente para proteger Vítor de ser ferido e agora é ausente para atender às suas necessidades especiais derivadas da condição de paraplégico.
Vítor é mais vítima de uma das centenas de outros tantos, assim como os demais nomes que foram apresentados no início deste texto. Dois deles estão com *, indicando pessoas que, de acordo com alguns poucos dados apresentados aqui, tiveram “sorte” por ainda estarem vivos.
Um deles é o vendedor ambulante Wellington Luiz Maganha, de 30 anos. Após receber a segunda parcela do auxílio emergencial, Wellington foi ao supermercado e ao sair foi abordado por policiais no estacionamento. Segundo ele, depois de ver os documentos, um dos policiais o agrediu com um soco na coluna e, já no chão, foi atingido na cabeça por uma pedra. Além de lesões na clavícula e no crânio, teve diversas escoriações pelo corpo. A justiça aceitou a denúncia apresentada pelo Ministério Público do Distrito Federal e o caso segue em investigação.
O outro, é do Vereador Renato Freitas, já apresentado aqui. Renato, além de Vereador é graduado e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, pesquisador na área de Direito Penal, Criminologia e Sociologia da Violência, trabalhou na Defensoria Pública do Estado do Paraná e já atuou como professor universitário e advogado popular.
Nenhuma dessas atribuições, mesmo declaradas no ato da abordagem policial, foram empecilhos para truculência policial usada na ação, e que pode ser confirmada nas dezenas de vídeos espalhadas por todas as redes sociais, no centro da Cidade Sorriso, em plena tarde de um pós-feriado.
Durante a sua live, Renato cita uma série de outros casos pelos quais já passou. E é impossível não pensar em alguns SE’s: se ele não ocupasse o cargo que ocupa, se o caso fosse em outra região da cidade, se fosse outro horário, se o fato não tivesse sido registrado quase que forma instantânea… será que hoje o seu nome não poderia compor mais um número, e virar estatística? Pois é!
“Em todos os processos por crimes capitais ou outros, todo indivíduo tem o direito de indagar da causa e da natureza da acusação que lhe é intentada; de ser acareado com os seus acusadores e com as testemunhas; de apresentar ou requerer a apresentação de testemunhas e de tudo que seja a seu favor; de exigir processo rápido por um júri imparcial de sua circunvizinhança, sem o consentimento do qual ele não poderá ser declarado culpado. Não pode ser forçado a produzir provas contra si próprio; e nenhum indivíduo pode ser privado de sua liberdade, a não ser pôr um julgamento dos seus pares, em virtude da lei do país.”
(Declaração de Virgínia, 1776, artigo 10).
No Brasil não há pena de morte, mas, a depender da cor da sua pele, o próprio Estado, em poucos minutos analisa fatos, provas, condena e não raro, executa, mata.
É urgente que não nos conformemos mais com ações que resultam em violência como as citadas aqui. É urgente deixar de se manter neutro em situações de racismo, seja onde e por parte de quem for. É necessário deixar de normalizar a morte e genocídio da população negra no nosso país. Pra ontem!
Alguém me acorda desse pesadelo
Cento e onze tiros acertam um preto
Menor jogado com corpo no beco
Nossa pele faz nós já nascer suspeito
Ágatha, Duda, Kauan, João Pedro
E dizem que só quem morre é traficante
Guerra licenciada pelo Estado
Favela alimenta sua fome de sangue
Durmo sem saber se vou acordar
Recuar no morro, nunca foi marcar
Tentam impedir a gente de sonhar
Quem não conhece, o que sobra é julgar
Explica que o herói é quem mata
E o vilão é quem te deu chuteira
Perde seu pai em meio a oitenta tiros
Cresce na sombra de uma mãe solteira
Olhos de ódio reluzem saudade
Lei Áurea liberta, não traz igualdade
Casa que habitava felicidade
Hoje só resta frieza e maldade
Não acredito em conto de fardas
Não acredito em conto de fadas
Vingança hoje é sobreviver
A paz aqui já não vale de nada
Genocídio, homicídio
Mais morador que bandido
Muitas famílias chorando
Sempre falam que é envolvido
Sempre falam que é engano
(A chapa esquentou)
Só que o moleque não tem nada a ver
Só que não tem pra onde ele correr
Bom dia, de hoje é tapa na cara
Mais um dia pra sua família sofrer
Quem disse que a escravidão acabou?
Quem disse que o mundo vai mudar?
Quem disse que o boy quer ver nós no topo?
Quem disse que nós temos que te agradar?
Mais um pro Estado e menos um do nosso
Meu povo clama e pede justiça
Rio de Jane pior que a Síria
Canto o que vejo, não é apologia
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Referências
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