Treinar de Pés Molhados (Ou Coisa Parecida)

Foto: Canva

“Um…

Dois…

Três…

Isso, vai, continua.

Quatro…

Cinco…

Não para! Não para!

Seeis…

Seeeete…

Sete! Só aguentou sete, Pedro? Tá fraco hoje?”

Largo os halteres tão perplexo quanto M., que é quem me atira a pergunta. Estamos, os dois, decepcionadíssimos. Nos dias mais glórios, dou conta de, embora à iminência de uma EQM, completar doze repetições para cada série daquele exercício. Mas hoje, não. Suei, deformei o rosto numa carranca que mais do que nunca me lembrou de que sou um primata, ativei músculos que o atlas da anatomia humana ainda haverá de catalogar e, me perdoem os meus vizinhos de aparelho, até gemi um pouco. Mas nada. Hoje, não. Falhei em ir além de um cabalístico sete. Perfeição divina e falibilidade humana fundidas num só algarismo. Sete.

Tá fraco hoje, Pedro?

A pergunta retumba ao ritmo de meu pobre coração sobrecarregado. Fraco na maromba, mas forte no propósito de, tendo voltado a meditar, não perder nenhuma oportunidade de sondar cada experiência que atravessa meu corpo, paro, fecho os olhos, me concentro e, ao chegar na parte do “respire fundo três vezes”, me dou conta de que é justo isso o que não consigo fazer.

Não passei da sétima repetição porque minha musculatura está suboxigenada. E ela está suboxigenada porque não estou respirando certo. E não estou respirando certo porque, esmagada sob uma tensão generalizada, minha caixa torácica não se expande o suficiente. E ela não se expande o suficiente porque estou irritado.

“Mas por quê?”, M. insiste no inquérito.

De cabeça baixa, me agarro ao que (está) ao alcance da sensação: meus tênis estão encharcados. Estou irritado porque vim para a academia a pé, pisei em mais poças do que sou capaz de contar, e, agora, meus calçados rangem, pesam um quilo a mais, deixam um rastro de água atrás de mim e ainda perigam arrematar essa terrível tragédia pessoal com um resfriado ou, sei lá, uma pneumonia.

M. ri com incredulidade amistosa. Não acredita na mentira que contei.

E tampouco acredito eu.

Ele sabe, eu sei, até quem me vê lendo jornal na fila do pão sabe que minha caixa torácica não se expande o suficiente porque, nesse momento, nesse exato momento, estou sofrendo um princípio de crise de ansiedade. Eu não passei da sétima repetição do exercício porque, ora, ora, quem diria?, estou sofrendo um princípio de crise de ansiedade.

Mas por quê?, e eu retrocedo no dia, seguindo a trilha de migalhas de pão. 

Talvez porque, terminadas as férias, estou de volta a uma carreira que não me satisfaz. Não me satisfaz, me enche de inseguranças e, para piorar, há muito me contaminou com a máxima-agouro, a ser ruminada todos os dias úteis pelos próximos quarenta anos, de que não existe trabalho ruim, o ruim é ter que trabalhar. Será que vou mesmo morrer antes da aposentadoria? 

Talvez porque, terminadas as férias, encaro o espelho com um desgosto imenso. Na imagem refletida, a criança obesa, o adolescente repulsivo, os meses – os anos – de treinos extenuantes e dietas enlouquecedoras que, em míseros quinze dias, parecem ter escoado pelo ralo. Desde quando descansar passou a custar nossa paz?

Talvez porque, sendo o mundo ainda mundo, ainda naquela tarde contemplei, impotente, metade da internet festejando e enaltecendo e coroando de fantásticos louros uma pessoa de índole tenebrosa, que fez mal a mim e a gente querida, mas que continua e continuará a ser festejada e enaltecida e coroada, pois, sendo o mundo ainda mundo, se safa quem tem poder e se cala quem tem muito medo. Se justiça, divina ou humana, é mesmo bugiganga quebrada, por que, se aparentemente nem amigos próximos o fazem, alguém compraria minha versão da história?

O treino acaba e, sem ter normalizado a respiração, retorno para casa. A pé. Enfiando, de propósito, o tênis em cada poça que encontro.

Em casa, tomo uma ducha quente, quentíssima, para ver se relaxo e respiro melhor. As costas reclamam, a pele do rosto pede arrego. Não funciona muito.

Saio do banho e, enquanto passo creme na cara, descubro que a trilha de migalhas de pão não me levou a lugar nenhum. Boiam e se desmancham na água da chuva que não para nunca. O que aconteceu ao longo do dia não é nada, é uma bobagem, um amontoado de problemas de gente branca. 

No fundo, meu trabalho, pelo qual eu lutei por anos, é maravilhoso. No fundo, estou com o melhor corpo que poderia ter. No fundo, meus inimigos estão longe, não me alcançam mais. No fundo, posso secar e aquecer meus pés quando bem quiser.

Nada disso é nada. Nada disso importa coisa nenhuma.

Por que, então, atravesso meus dias como um náufrago resfolegando em alto mar? Por que, quando me deito de noite, me cubro como se um mal terrível estivesse sempre à espreita, prestes a saltar do escuro?

Estou me vestindo quando escuto os primeiros acordes de Na Hora do Almoço, canção de Belchior. Paro, fecho os olhos, me concentro, respiro fundo (o mais que posso). O cantor se coloca numa cena simples, cotidiana, costurada na entrelinha. Um almoço em família. Fala do pai, fala da mãe, da irmã, da avó. Não revela muito, mas lamenta ser tão moço para tanta tristeza. Ao final de tudo, com uma voz que vai se esganiçando do canto ao grito, nos exorta a deixar de coisa e cuidar da vida, porque, de outra forma, já, já nos chega a morte ou coisa parecida, ou coisa parecida, ou coisa parecida, ou coisa parecida. 

Penso em meus antepassados, penso no sangue que corre em mim e que carrega atavismos, fraturas genéticas, moléculas descompensadas – ou coisa parecida. Que alavanca é essa que, na máquina que sou, teima em operar com tanto defeito?

Por Pedro Jucá
17/10/2023 14h48

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