Mudança de ângulo.docx

Foto: Mel Elias/Unsplash

Segurei a pontinha de metal da fita métrica amarela bem na esquina do rodapé de cimento que sustenta o vidro da varanda e fui desenrolando-a pela superfície da parede, acompanhando o andar dos tracinhos e números, até chegar do outro lado. 1,85m. Por exatos três centímetros, eu tinha perdido a discussão. 

De tempos em tempos, o apartamento passa por um troca-troca de disposição dos móveis, plantas, tapetes, quadros e um sem número de qualquer coisa não fixa. Às vezes também vai pra parede uma tinta de outra cor ou um lambe-lambe que piscou numa oferta na tela do celular. 

Talvez seja a busca eterna por novidade, minha. Ou a vontade de colocar em prática tudo que absorveu dos programas de reforma, dela. Mas aqui em casa, em uma rotatividade bem considerável, vira e mexe mexemos e remexemos num algo e filtro de barro vira vaso de flor ou biblioteca vira bar. E essa foi a vez da “salinha” na varanda (mais especificamente o sofá da varanda, que é o que compreende “a salinha”). 

Na tarde em que surgiu o plano da nova disposição naquela área da varanda, eu insistia que por mais que a ideia de mudar o sofá de lugar fosse genial- e de fato era ótima em termos de ampliar o espaço, aumentar a circulação e tornar o ambiente esteticamente mais interessante – ele simplesmente não cabia naquele espaço e pronto. Afinal, era visível, nítido, que o sofá era muito maior que a parede. E foi nesse Quer apostar?  que peguei a fita métrica. E quebrei a cara.   

Quando constatei com a fita que o sofá caberia num encaixe perfeito encostado naquela parede, como se feito sob medida só para aumentar a humilhação de meu fracasso na discussão prévia do cabe não cabe, apesar de ter perdido o bate-boca da razão, comemorei. 

Depois do “arrasta-arrasta” de cestos, baú e mesinha de apoio pra lá, e fazer o cálculo perfeito para manobra precisa e apertada, levantamos, reviramos e arrastamos aquele sofá que parecia feito de chumbo, e finalmente o encaixamos em seu novo spot.

No seu azul turquesa desbotado pelo sol excesso de sol, sempre bem-vindo, o sofá pintava o conforto naquele cantinho. Curtimos o fim de tarde e começo de noite sentadas em novos ângulos e celebrando mais uma modificação bem sucedida. E foi na manhã seguinte, quando sentei para escrever no habitual sofázinho da varanda, que a coisa desandou. 

De repente, quando levantei a cabeça olhando desfocadamente para frente, através da tela do computador, em busca de algo sobre o que escrever, vi o estático da parte da churrasqueira. Ao olhar para frente, não enxergava mais o movimento lá de fora, das pessoas circulando, dos cachorros atentos ao atravessar o cruzamento, e principalmente, não via mais a casinha perdida dentre os prédios que faz aparecer no meu imaginário tantas cenas e histórias. 

Notei que o movimento da rua maquinava minha cabeça, e o estático da casa paralisava minhas ideias, sendo impossível conseguir escrever algo sem olhar para o lado. Sob pena de desenvolver um grave torcicolo, antes dela acordar, entre suspiros de força, gotas de suor e já quase com um sinal de dor na lombar, voltei o sofá para seu lugar original.  Em alguns ângulos, não se pode mexer.

Por Rai Gradowski
29/03/2022 18h28

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