Perdi a Ritalina.docx

foto: Divulgação

Perdi a Ritalina. Já tem alguns meses que noticiei o desaparecimento pra minha conja, na esperança do reforço na busca. De pronto, ela não deu moral. Deve tá enfiada em algum canto junto com tudo que você perde por algumas horas. Tipo os óculos de grau, o celular, a carteira, o Allegra, a chave do carro, os óculos escuros, o livro da vez, o carregador do celular, a pochete, o relógio, o outro pé do tênis, a camiseta de sempre.

Ela esperou esgotar todas as gavetas, armários e buracos da casa e só ao ver minha derrota iniciou a ajuda. Mas dessa vez não veio me apontar o lugar óbvio do objeto perdido. O maldito frasco que eu tinha tomado um só comprimido evaporou e nem São Longuinho foi capaz de trazer de volta.

Não lembrava mais do medicamento perdido até que folheando um caderninho de ideias, dei de cara com páginas desvirtuadas no meio do brainstorm. Título: Ritalina, sublinhado com dois riscos quase paralelos e depois três páginas em caneta azul de letra corrida (e visivelmente em altíssima velocidade). Pela data, eu acabara de perder o segundo frasco.

Fiz o uso por um mês depois de consultar o médico pra tirar outros comprimidos. O pânico tinha ficado lá pro passado e eu realmente queria voltar a sentir. Meu rosto canceriano acostumado com lágrimas já estava ressecado.

No consultório, enquanto eu respondia sobre uma vida inteira, os calcanhares batucavam no tapete cinza, e joelhos e coxas dançavam num ritmo nervoso. Eu estava zero nervosa.

Muitos minutos passaram. Ele sugeriu a ligação da ansiedade com a hiperatividade que balançava minhas pernas e hiperacelerava meus pensamentos. Diminui a dose do escitalopram — voltei a chorar como recomendado pela OMS. E comecei uma dose baixíssima de Ritalina.

Durante um mês eu mal senti tédio. Era uma loucura acordar, dar todos os checks na agenda, sentar no sofá fim da tarde e esperar o dia seguinte numa tranquilidade controlada. Silêncio. A Ritalina me domou na rotina da produtividade satisfatória. E talvez por isso, suspeito que foi meu inconsciente sonâmbulo quem deu sumiço no frasco.

No caderninho decifro as linhas corridas em azul. Concluo que a Ritalina organiza e cala os pensamentos acelerados. O aumento do foco faz a louça ser lavada inteirinha numa tacada só. Sem ela, o papo interno não cessa nunca e há uma eterna expectativa de que algo vai acontecer. Não precisa ser bom ou ruim. Só algo. Sempre acontecendo algo. O texto acaba interrompido em um início de frase, indicando que provavelmente fui fazer outra coisa.

Tipo agora.

Por Rai Gradowski
18/07/2024 09h36

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