Montar uma banda de rock. Compor, ensaiar durante horas. Cair na estrada e tocar para multidões. Sem dúvidas, esse é um dos sonhos mais comuns entre os amantes da música. Certamente você já conheceu várias pessoas que vivem, todos os dias, essa caminhada dura e muitas vezes incerta. E cada uma dessas caminhadas é absolutamente única e, em comum, somente a sinuosidade dos caminhos que levam para os destinos sempre imprevisíveis.
Em 1971, chegando aos 30 anos, um músico britânico estava entrando nessa sintonia. Não era a primeira vez que isso acontecia. Ele ainda era muito jovem quando encontrou em um de seus amigos o parceiro ideal para montar uma banda. Quando a década de 1960 começou, eles já davam seus primeiros passos – e sentiam o gosto desse sonho na prática pela primeira vez. Essa história poderia ser mais uma em meio a tantas outras. Porém, os anos 1960 passaram e o sonho daqueles jovens se transformou na maior e mais influente banda de rock da história: The Beatles.
O ‘músico britânico’ em questão é, ninguém mais, ninguém menos, que o Sir Paul McCartney. Tanto os Beatles quanto ele dispensam maiores apresentações. A obra construída por John, Paul, George e Ringo tornou-se uma das maiores referências artísticas da história, influenciando quase tudo que veio junto e depois deles. Inevitavelmente, o negócio ficou grandioso de mais e seria estranho se diferenças musicais e, também, pessoais não aflorassem. Assim, por uma série de fatores, o Beatles se dissolveram junto com a chegada da década de 1970.
Enfrentando a depressão e precisando se afastar dos problemas e tensões relativos ao fim dos Beatles – mas apaixonado pela sua mulher, a fotógrafa Linda McCartney – Paul iniciou sua carreira solo. Primeiro, experimentou a ideia de ‘one-man band’ no delicioso “McCartney“. Na sequência, num disco assinado por ele e pela Linda, o incrível “RAM“. Dois discões, porém de um artista solo, e não de uma banda. E foi aí que a vontade de tocar com um grupo começou a bater e ele decidiu que era o momento de montar um novo projeto.
E já em 1971 o novo sonho do Paul começa a se tornar realidade. Ao lado de sua parceira Linda, foi em busca de integrantes para sua nova banda. Denny Seiwell era um baterista de estúdio que já havia tocado com a nata do jazz nova-iorquino quando recebeu um convite especial do Macca. Para assumir as guitarras, Paul convidou um antigo conhecido de Linda, o ex-guitarrista do Moody Blues, Denny Laine. Essa foi a primeira formação de uma banda que nasceu com a responsabilidade de suceder o maior evento pop da história. Felizmente, o responsável por tudo isso era um dos mais talentosos e geniais musicos do rock. E assim nascia uma das grandes bandas da década de 1970, os Wings.
Um dos objetivos do Paul era retomar a vida dentro do ambiente de banda, algo como uma volta as raízes. É possível perceber vários indicativos disso. Partindo do nome da banda – que não leva o nome do ex-beatle – chegando até a gravação e produção do primeiro disco. A época sugeria, e criou-se uma expectativa, de que Paul retomasse sua carreira de maneira grandiosa. Mas os planos eram outros. Inspirado pela gravação de “New Morning“, discasso de 1970 do Bob Dylan, Paul resolveu organizar-se do modo mais simples e orgânico possível. E, mais ou menos como Dylan havia feito um ano antes, Paul e sua banda entraram em estudio para fazer uma gravação rápida. Uma semana depois quase tudo já havia sido resolvido. A intenção era fazer um registro daquele momento mais íntimo e de construção. Aí nasceu o primeiro disco do Wings, “Wild Life“.
“Take it, Tony!”. É assim, invocando o produtor Tony Clarke, que o disco inicia. De cara, ‘Mumbo‘ nos faz lembrar que estamos escutando um dos melhores e mais versáteis vocalistas da música. A competência do Paul para usar as vozes não só para transmitir mensagens, mas também como sons que ajudam a construir a música – característica marcante no “RAM” e também no Wings – aparece logo na sequência, com Linda cantando a swingada ‘Bip Bop‘. ‘Love Is Strange‘ é uma versão reggae – ritmo que faria a cabeça de gente como Caetano Veloso e Keith Richards nos anos 1970 – da música que ficou famosa nas vozes de Mickey & Sylvia. A música que da nome ao disco, ‘Wild Life‘, trás um clima mais sóbrio para questionar a relação do ser humano com os animais e a natureza. Paul, vegetariano e ativista pelo meio-ambiente, constroi seu questionamento sobre sua enorme linha de baixo e incrível voz.
A segunda metade do disco reserva o melhor e começa muito mais serena. ‘Some People Never Know‘ é o Paul, como de costume, escrevendo lindas canções de amor. O seu fim somente rítmico anuncia uma pérola de sua discografia. Dividindo os vocais com Linda, ‘I Am Your Singer‘ é o máximo de simplicidade e beleza que eles buscavam neste disco. Paul havia gostado tanto da rough mix que o engenheiro de som Alan Parsons havia feito que ela mesmo acabou entrando no disco. O resultado é uma música que soa muito mais crua e acolhedora, o que ajuda a construir uma atmosfera envolvente. E, após uma canção tranquila, uma que leva a assinatura McCartney de hit. Aproximando-se do fim do disco, ‘Tomorrow‘ é a mais contagiante música do álbum e conta com uma ótima construção e, como ao longo de toda a gravação, ótimas contribuições de todos os integrantes da banda. A música que fecha o disco, ‘Dear Friend‘, é grave e triste como as diferenças que surgiram entre e ele e seu maior companheiro musical e amigo de infância, John Lennon. O certo é que uma canção como essa é mais uma prova de que todos os herois são, também, pessoas.
Wild Life não é, em si, um disco audacioso. E talvez por isso ele soe tão bem. A volta a uma banda de rock teria que começar de forma mais crua. Ali, Paul iniciou uma parceria de sucesso com o incrível Denny Laine, o baterista Denny Seiwell mostrou do que ele seria capaz de fazer e Linda, que até pouco tempo não era musicista, contribui igualmente para a construção do disco e da atmosfera que a banda buscava. É claro que aqueles que esperavam um trabalho grandioso do beatle de ‘Eleanor Rigby‘ e que a pouco havia lançado canções como ‘Maybe I’m Amazed‘ e ‘Uncle Albert/Admiral Halsey‘ se decepcionaram com esse disco, que começa de forma tão descontraída e trás músicas com produções tão simples quanto a de ‘I Am Your Singer’. Mas considerando as motivações e objetivos do Paul naquele momento da sua carreira e, principalmente, da sua vida, Wild Life faz todo o sentido em sua discografia. E esse seria só o primeiro voo do Wings.
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