Stalkeei Uma Casa.docx

Foto: Dhruv Mehra/Unsplash

Preciso confessar um crime. Sendo isso aqui autoficção, nunca saberão que limites extrapolei.

Pois bem, como consta no título: stalkeei uma casa. E sim, no combo vieram os moradores. Já adiantando minha defesa: ausente o dolo, porque não tive a intenção de saber porra nenhuma da vida deles. Mas da casa, eu precisava saber tudo. 

Quando escrevo da varanda do apê, doutro lado da rua bem na esquina, é nela que meus olhos se fixam buscando palavras. Da parte interna que não enxergo daqui, já tenho a planta detalhadíssima rabiscada na cabeça. Do terreno dos fundos que também não vejo desses ângulos, inventei tudo que tem plantado no quintal. 

A fachada real da minha casa ficcional fica ali na esquina doutro lado da rua. E a curiosidade pra saber como ela é por dentro? 

Mudei a rota do passeio com as cachorras e o vaivém pro xixi-cocô virou a calçada rente aos limites de seu terreno. Deixava elas ficarem horas ali no cheira-cheira da grama enquanto entre as grades de palito de concreto, eu espiava. Certa vez, a velha (uma das moradoras) me pegou bisbilhotando e disfarcei puxando as coleiras e dando um gás na caminhada. 

Na blackfriday, cadelinha do consumo, comprei o binóculo. Potente.  Café e almoço e jantar, estava lá eu dando uma bisolhada na minha casinha. Num dia, a velha mexia na horta, e agora eu conseguia ver, tinha alface (e seria essa a única coisa que eu reconheceria mesmo). Quando do nada, a velha se ergueu, limpou as mãos de terra na calça e – eu juro – pareceu me olhar. O rosto brabo e enrugado e gigante aos meus olhos enfiados no binóculo doutro lado da rua. Abaixei o binóculo e sumi pra dentro do apê. 

Mas foi quando eu sonhei que a casa era super classicona e o oposto do que eu tinha criado que o negócio começou a ficar um pouco doentio. De repente, eu precisava conhecer todos os cantos escondidos de minha visão, por dentro e fora.

A ideia da imobiliária não foi bem minha, mas meti uma roupa social reprimindo o ódio da vestimenta e fui lá bater no portão. Atendeu um piá, acho que o neto da velha – já tinha visto algumas vezes por ali. Não me deixou nem passar das grades. Da porta, gritou que não tinham interesse de venda. Um certo alívio se desenhou em meu rosto apesar da frustração do plano.

Plano B. A casa é grudada numa clínica veterinária. Da janela fundos, na certa daria pra ver a parte detrás do quintal. 

Encarei minhas cachorras. Berenice ganhou a consulta – castigo por mau comportamento. A veterinária apalpava a barriga da Berenice que quietinha e comportada só aguardava o andamento do exame enquanto eu respondia qualquer coisa e olhava pela janela do consultório, periciando o terreno de minha casinha ficcional. Pra maior decepção talvez da década, nada de cercas vivas.

Quando saí da veterinária, trombei com a velha abrindo o portão da casa. E Berenice, que já tinha sarado da diarreia fake, entrou junto com a velha cheirando seus calcanhares e fazendo tipo de anjinha. 

A velha desrabugentou – fazia carinho na Bere enquanto justificava Deve ser o cheiro. Tenho uma igualzinha. E bem boazinha assim também. 

Tenho uma igualzinha? Me deu a deixa. Ignorei o fato de Berenice ser uma assassina de cães (ainda mais de Yorks) e sugeri um encontro canino. 

E foi aí que a velha me chamou pra entrar.

Por Raisa Gradowski
15/12/2022 15h32