No mês de setembro, a coluna Not Today, Satan atingiu o patamar que eu sonhava para ela: mais de uma pessoa me procurou no inbox do Facebook para falar sobre suas experiências com os textos da coluna e sugerir pautas. Outras pessoas também demonstraram grande interesse em compartilhar reflexões e histórias na coluna. Uma dela foi o Éric, que é gay e escreve regularmente para um blog pessoal. Depois de uma boa conversa, ele me mandou o texto que reproduzo abaixo:
– Eu preciso te pedir perdão, é, perdão. Por ter torturado você com a minha ausência, por tentar te punir todas as vezes que você queria ouvir um ‘eu te amo’ e eu não disse.
– Claro que perdoo filho. Eu amo você.
– Pai, eu preciso ainda dizer que também te perdoo por toda a ausência e por todo o sofrimento a que fui submetido por tua falta de compreensão e esclarecimento, a gente precisa parar, sabe? A gente precisa resgatar essa relação para que sigamos em paz, afinal de contas, eu te amo!
– Filho, eu amo você!
Foi assim que eu resgatei uma das relações mais difíceis da minha vida, e naquele momento eu percebi que um pedaço meu também havia sido resgatado. Ser homossexual, uma condição que implica em receber uma série de rótulos, como se a homossexualidade fosse a característica que define toda uma personalidade.
Saí de casa por vontade própria aos 17 anos, enquanto cursava Design de Produto à noite e trabalhava durante o dia. Naquela época, cerca de dez anos atrás, a comunidade gay era bem menos representada e eu me sentia um ET envergonhado que havia acabado de decepcionar a família e morria de medo de sofrer pressões e repressões por conta de uma sociedade até então desconhecida em que eu havia me inserido.
Não demorou muito e eu comecei a entender que essa culpa interna, essa coisa pesada e dilacerante precisava parar de me ferir, e eu decidi que já era a hora de fazer as pazes comigo mesmo e me perdoar. Entendi que ser gay não era um tipo de característica que me definia, era apenas mais um ponto peculiar da pessoa que eu era.
Quando você se resolve é como se você tirasse uma carapaça espessa e pesada do corpo: as coisas começam a acontecer e você, em vez de chorar quando se sente agredido, reage e tem forças para falar sobre algo que não mais te assusta, e que é tão seu quanto o cabelo aí no topo da sua cabeça. Você para de se sentir atingido por aquele tipo de verdades “travestidas” de brincadeiras e consegue falar sobre e vociferar seu ponto de vista sem medo do que vão pensar. Afinal, somos impotentes às opiniões alheias, é o que a gente faz, independente do que vão dizer, que nos constitui.
Felicidade não tem caminho, não tem sexo e não vem enlatada como uma fórmula infernizante, ela se dá nos desvios de rotina, livre de obrigações. Cresce a cada vez que você se olha no espelho e consegue ver as próprias verdades refletidas, porque, quando nós mostramos as nossas verdades para a vida, ela não nos nega a dela.
Quando eu me resolvi, fui capaz de me permitir a amar, de viver uma relação que ultrapassasse a barreira do quase e que pudesse seguir um curso definido e real. Quando nos escondemos por medo, a vontade de amar permanece ali, latente, mas não aflora pois insistimos em deixar nossas relações em um submundo onde só nós mesmos sabemos que elas existem. Amores que não extrapolam paredes e acontecem em segredo nada mais são do que histórias pequenas e contidas que proporcionam apenas migalhas de um amor que poderia ser muito maior, sincero, real e apaziguador.
Quando você se resolve, as suas referências extrapolam a convivência com o próprio meio gay, você consegue transitar seguro de quem é em todas as esferas e incorpora experiências aqui e acolá. Os preconceitos que existem dentro do próprio meio podem até te chatear às vezes, mas quando você se resolve de verdade aprende que é sempre mais fácil desconectar ou desconstruir, focar no que tem sintonia com você e tocar a própria vida sem agredir.
O lance desse caminho de ser gay é segregar menos e participar mais, nos perdoarmos por todas as ausências que se fizeram necessárias, por não termos entregue o valor que queriam que entregássemos e termos apenas levado o valor que nós solitariamente cultivamos. Devemos dar adeus a quem nos obriga a mentir para que apenas o seu conto de fadas seja preservado, despedir-se de situações degradantes que dizem mais a respeito de quem deveríamos ter nos tornado e nos aproximar de quem abre os braços para o que de fato nos tornamos.
Nós não precisamos saber de tudo e sobre tudo, precisamos apenas entender que a vida também é a eterna arte do contentamento, a arte de saber apreciar o peixe abaixo da superfície sem ter que pegá-lo com as próprias mãos. E que no final vai importar bem pouco se você é gay ou heterossexual; amor e felicidade não tem sexo e a vida é como a tempestade que coroa o findar de um dia de verão. Extremamente feroz, imponente, transformadora, intensa e passageira.
Éric Elie’l escreve sobre comportamento e suas percepções da vida todas as segundas e quintas para o blog Desvios de rotina.
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