I’m Alive

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O ano é 1968. O lugar é o Brasil. Gilberto Gil havia lançado aquele disco do ‘Pega Voga Cabeludo‘ acompanhando d’Os Mutantes. Mutantes que haviam lançado aquele disco do ‘Senhor F‘. E muito mais! O Caetano Veloso estava convocando todo mundo para a Tropicália. E se eu falar que ia rolar um show com toda essa galera junta no palco? Inacreditável.

https://www.youtube.com/watch?v=CkydG29xWUU

O problema é que, em 1968, o Brasil vivia seu quarto ano de ditadura militar. Foi nesse ano que entrou em vigor o Ato Institucional Nº 5, ou seja, o presidente possuía poderes ilimitados e a porrada rolava solta. E não era muito difícil se tornar subversivo aos olhos de quem tinha o poder. Agora imaginem o que aconteceu depois do show que rolou na Boate Sucata, lá no Rio de Janeiro, que reuniu aquele time que eu falei?

Bem, o próprio Caetano disse que talvez tenha sido o espetáculo de rock mais radical que já aconteceu no Brasil. Ao lado do palco havia uma bandeira, feita pelo artista Hélio Oiticica, na qual se via um corpo estendido e se lia ‘SEJA MARGINAL, SEJA HERÓI‘. O negócio foi chocante, mesmo. Tanto que o que se comentou foi que o hino e a bandeira nacional haviam sido desrespeitados. Resultado? Cadeia para Gil e Caetano. Sem saber o que iria acontecer, viveram dias de incertezas. Tiveram suas cabeças raspadas quando foram presos – esses malditos cabeludos – e, entre outras causos, Gil chegou até a se apresentar para uma tropa dentro do quartel.

Seis meses depois, quando estavam presos em Salvador, os militares chegaram a uma solução final para o caso deles: o exílio forçado. O destino? Madri e Lisboa, que também viviam dias de ditadura, estavam fora de cogitação e havia uma cidade com uma cena musical mais efervescente que a de Paris. Eles sabiam para onde ir.

Jimi Hendrix, The Who, Rory Gallagher, Free, entre muitos outros na pequena ilha de Wight, no Reino Unido, num festival que foi maior até que o Woodstock. Algo em torno de 600 mil pessoas (seis vezes mais que o número de moradores locais) reunidas para celebrar o rock por quatro dias. Tinha, também, dois brasileiros tocando com suas guitarras músicas que misturavam rock, funk e samba. Caetano e Gil, estrelas no Brasil, exploravam novas terras como desconhecidos. Aí surge o Ralph Mace, um cara que havia produzido o Bowie, querendo gravar os dois. E foi o que aconteceu. Sob os cuidados de Mace, Gil e Caetano lançaram discos homônimos em 1971.

O primeiro disco que Caetano gravou em Londres transborda a tristeza e a saudade que ele sentia. Um dia eu tive que deixar meu país, e nesse dia eu não pude nem mesmo chorar. E essa é só a estrofe inicial. Um disco forte, com ótimas canções. O tempo foi passando e a depressão do exílio também. E foi em 1972 que ele se juntou ao Jards Macalé no violão, ao Tutty Moreno  e ao Áureo de Souza na percussão e bateria e ao Moacyr Albuquerque no baixo para começar a transar novas ideias. Ousando e experimentando mais, absorvendo as influências do rock britânico e do reggae que começava a tocar na Portobello Road, Caetano e a sua excepcional banda gravaram o disco que seria um marco na sua carreira e um dos mais importantes da música brasileira: Transa.

O disco começa macio. Os primeiros acordes de ‘You Don’t Know Me‘ são envolventes, Caetano canta num inglês tranquilo. Mas a música vai num crescente e, quando você percebe, já está gritando ‘nasci lá na Bahia’. Caetano passeia não só entre o português e o inglês, mas também entre várias culturas. A mistura de línguas e de referências revela coisas importantes sobre o disco que tenta aproximar uma Salvador, indesejadamente distante, de Londres.

Na sequência vem ‘Nine Out Of Ten‘, que traz a influência do reggae combinada com uma letra genial. Um disco que começa com duas músicas assim já se justifica. Mas ainda tem muito mais. ‘Triste Bahia‘, inspirada num poema de Gregório de Mattos, com seus quase 10 hipnóticos minutos, experimentação, barimbaus e percussão. Em ‘It’s a Long Way‘ Caetano revela a influência da cena britânica, mesmo não sendo a primeira vez que ele falava dos Beatles. O disco segue e é possível perceber que ele foi gravado por músicos geniais e em grande sintonia. As variações de andamento e dinâmica nas músicas são sempre precisas. ‘Mora na Filosofia‘, cantada em português, prova isso. Ainda tem a ‘Neolithic Man‘ e um blues rock n’ roll chamado ‘Nostalgia‘.

Esse foi um daqueles discos que, ao passar dos anos, foi se consolidando. Hoje é considerado por muitos o trabalho mais importante do Caetano. Um disco muito forte emocionalmente, com músicos incríveis, abertos a novas influências e sem medo de arriscar no estúdio.

Bem, o que aconteceu com o Brasil desse momento em diante é assunto para outra hora. O interessante é pensar que há tão pouco tempo atrás, alguns dos nossos maiores gênios da música tiveram que passar por essa temporada, como escreveu o Chico, ou por essa omissão um tanto forçada, como dizia o verso censurado do Vinicius. Nem mesmo os nossos herois saíram ilesos. A repressão chegou a prender até a Voz, que andava por aí disfarçada de Ivo Rodrigues. Isso sem contar os inúmeros casos de tortura, violência, assassinato e repressão. Felizmente, vivemos dias de liberdade. E essa liberdade é um dos nossos maiores bens. A nossa sorte foi que a música conseguiu responder a toda ignorância a sua maneira genial: com muitos discões.

  • NÃO É MAIS DIA 36
    Pilula musical para mudar de vibe:

    • Bob Dylan – Maggie’s Farm (1965) – mestre Dylan é mestre porque sempre fez o que quis

E aí, curtiu os sons? Explore os links e desvende mais músicas! Tem alguma dica de discão ou sonzeira? Comente! A música boa é infinita. 😀

Semana que vem tem mais!

Por Vinicius Vianna
24/03/2015 13h00