Em “Coringa”, Todd Phillips traz um drama com tons de terror e um intenso senso crítico.

Um filme de ficção não existe apenas como produto de entretenimento. Dependendo da lente pela qual o espectador o analisa, ele pode existir como um documento histórico, um registro perene de determinado período. Ele também pode ser um espelho, que reflete, mesmo que distorcidamente, uma sociedade ou um grupo de indivíduos. Um filme de ficção existe também como parte integrante de uma cultura, onde acontecem processos de identificação e de formação de identidades.

Por que todas essas observações seriam necessárias para iniciar uma discussão sobre Coringa? Porque Coringa almeja, e por vezes alcança, ser reconhecido como um documento histórico e como um reflexo social, mas deliberadamente ignora sua característica mais marcante: sua capacidade, aliada ao atual contexto histórico e social, de identificação para um específico perfil de público.

Com direção de Todd Phillips, que assina o roteiro com Scott Silver, Coringa acompanha Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), um homem lutando para se integrar à sociedade despedaçada de Gotham. Trabalhando como palhaço durante o dia, ele tenta a sorte como comediante de stand-up à noite. Atormentado por pensamentos negativos obsessivos, obrigado a cuidar da mãe doente, perseguido e humilhado por criminosos e cidadãos não-tão-exemplares da metrópole, Arthur toma uma violenta decisão que causa uma reação em cadeia e inicia um movimento capaz de derrubar as bases da cidade.

Arthur Fleck é interpretado por Phoenix como um homem constantemente a beira de um colapso. Sua aura ameaçadora é reforçada por sua presença física e sua risada sem alegria, fruto de um distúrbio mental. Sua frágil estabilidade psicológica depende de auxílios governamentais de Gotham, tratados no filme como migalhas atiradas aos miseráveis pelos poderosos da cidade, e tomadas quando lhes convêm. Aqueles no topo vivem em mansões, com mordomos atendendo suas mínimas necessidades; aqui embaixo, os ratos se devoram pelos restos. Fleck é um homem bom, talvez o único homem bom em Gotham. Seu trabalho e vocação é fazer as pessoas sorrirem. Mas a sociedade… a sociedade o corrompe.

Coringa é tangivelmente cínico. Apoiado num realismo que se alimenta da conjuntura não diegetica, seria necessário muito esforço para perder o comentário sobre o estado da nossa própria sociedade. O Coringa é uma consequência daquela coletividade, e nós enfrentamos diariamente as consequências da nossa. Nossa falta de empatia e de responsabilidade mútua nos assegura nossa própria destruição.

Prestando exagerada homenagem à filmografia de Martin Scorsese (especialmente Taxi Driver), Coringa aborda uma variedade de temas, alguns de forma mais bem sucedida que outros. Seu retrato das distorções de realidade e de percepção causadas por transtornos mentais não tratados talvez seja um dos mais interessantes a aparecer em um longa metragem comercial nos anos 2010, e sua abordagem de temas sociais, embora pessimista, não deve ser descartada sem reflexão. Como realização cinematográfica, esta é uma obra que merece atenção.

Coringa também é um estudo de personagem que nos mostra o nascimento de um vilão sórdido com uma causa justa. Ele não machuca nenhum inocente porque não há inocentes em Gotham. As ações de Fleck são justificadas no roteiro de forma a provocar empatia, e até mesmo identificação. Mesmo quando o diálogo aponta para um caminho de alerta, as imagens na tela negam este aviso. Arthur Fleck é o herói do filme. Ele é enquadrado como herói, iluminado como herói, tratado como herói. Se cinema é imagem em movimento, o discurso da imagem tem peso significativo na interpretação, e este discurso declara o Coringa, um personagem capaz das mais cruéis atrocidades, como herói.

Com 2h01min de duração e uma vaga ligação com o universo que lhe deu origem, Coringa é um drama com tons de terror, e um intenso exercício de senso crítico. Produtos midiáticos não têm responsabilidade por ações que seus espectadores possam tomar. Filmes, vídeo games, livros não estimulam atos violentos. Mas eles também não existem em um vácuo, e estão conectados a uma rede cultural que influencia hábitos de consumo, estilos de vida e identidades. Prestar atenção a este processo pode nos ajudar a compreender muito do que acontece ao nosso redor.

Crítica por Luciana Santos, especial para o Curitiba Cult.

Por Curitiba Cult
03/10/2019 09h41