Depois de um ano em casa, estamos com sede de cultura. Faz mais de um ano que não vemos peças de teatro, que não vamos ao cinema, que não vemos um balé, mais de um ano que o Teatro Guaíra está de portas fechadas. Dia 15 de março completou um ano do decreto estadual que determinou a suspensão das atividades artísticas e administrativas presenciais no teatro. Essa medida, essencial no combate à pandemia, nos deixou com fome de cultura.
O Teatro Guaíra, apesar das dificuldades trazidas pela pandemia, conseguiu se manter ativo. Foram vários concertos digitais da Orquestra Sinfônica do Paraná, parcerias entre bailarinos e músicos, projetos para crianças, vídeos com os atores do Teatro de Comédia do Paraná… Iniciativas não faltaram.
Quando, então, o Balé Teatro Guaíra lança não uma, mas mais duas obras digitais, talvez você nem queira mais parar para assistir. O computador não consegue trazer a proximidade, os cheiros e a sensação de uma apresentação ao vivo. Mas os vídeos são curtos e os nomes, curiosos.
O mais recente estreou no Dia Internacional da Dança. Chama-se Variações Sobre a Mesa. A criança que habita em mim e gosta de brincar com as palavras assistiu este vídeo pela primeira vez logo depois do almoço, como se fosse sobremesa.
À primeira vista, este é mais um dos vários vídeos engraçadinhos que podemos encontrar online. Não me encantei tanto com ele quanto com a Valsa de Apartamento, sobre a qual falarei a seguir. Só que cismei com algum aspecto do vídeo e precisei assistir de novo para descobrir o que era.
Assistindo pela segunda vez, percebi que os bailarinos nunca são vistos de corpo inteiro. Eles praticamente não saem de cima da mesa. Observação óbvia. O próprio título diz “sobre a mesa”. Culpo minha alma de formiga que imediatamente pensou em sorvete e chocolate pelo lapso em interpretar o nome no sentido literal.
Toda a coreografia é feita no mesmo enquadramento de uma videochamada. E, se você esteve no planeta Terra no último ano, é muito provável que saiba exatamente de qual enquadramento estou falando. Os bailarinos dançam com os braços, com o tronco, levantam os pés e até se alongam em cima da mesa.
Os movimentos, porém, não são aleatórios. Se estas variações tivessem sido apresentadas no palco, mesmo com uma proposta parecida, a escolha coreográfica teria sido completamente diferente. E não só porque um meio (palco) é bem diferente do outro (digital).
Os bailarinos e bailarinas tomam café, se cumprimentam pela tela e deitam sobre os braços como estudantes com tédio durante a aula. Relembrando uma das tendências virtuais do início da pandemia, jogam objetos da casa de um para a casa do outro sem sair do próprio quadrado. O enquadramento dos pés nos faz imaginar como devem ser os ensaios e aulas de dança online da companhia no último ano.
Os gestos, que seriam somente engraçados há dois anos, hoje nos são familiares demais. E, dessa forma, as Variações Sobre a Mesa dão continuidade à lógica do vídeo que as precederam, a “Lógica da Valsa de Apartamento”.
Antes eu não parava em casa. Hoje, já conheço cada cantinho do meu apartamento. Me mudei não faz nem seis meses e já sei onde a poeira acumula, quantas vezes por semana eu preciso limpar a sala, sei que é diferente de quantas vezes eu preciso limpar o quarto. Eu sei que horas bate sol, que horas ele vai embora. Sei da rotina de praticamente todos os meus vizinhos, do mesmo prédio ou do prédio ao lado.
E sei que tenho sorte. Muita gente não teve o mesmo privilégio de poder trabalhar de casa todo esse tempo. Cada vez mais, as pessoas precisam se arriscar, voltar ao trabalho enquanto o vírus continua à solta e o número de mortes não diminui o suficiente. Eu trabalho na área da comunicação, então faço parte do time que está trabalhando de casa, procurando se reinventar.
Com tudo isso, o nome, “Valsa de Apartamento”, me chamou a atenção. E resolvi assistir ao vídeo, não só pela obrigação de alguém que trabalha na Casa, mas assistir de verdade, como público. Porque o nome, “Valsa de Apartamento”, não me sai da cabeça.
O que é uma valsa? Valsa é um estilo musical que nasceu na Áustria, nos salões de baile, feita para ser dançada a dois. É uma dança feita para um espaço amplo, para os palcos, para os palácios, não para um apartamento. Não é uma música de câmara, algo pequeno e íntimo. É algo para ser compartilhado. E no vídeo “Valsa de Apartamento” nós temos bailarinos sozinhos. Em suas salas, quartos, garagens, terraços… Todos dançando a mesma coreografia, mas cada um em seu espaço, em seu apartamento.
Momento de curiosidade nos bastidores da produção: este vídeo do Balé Teatro Guaíra foi filmado com drones. As imagens aéreas, a câmera passando de dentro para fora das janelas, de dentro para fora dos braços e pernas dos bailarinos, já deve dar esse fato a entender. Mas, para você que não é da área e não teve certeza, sim, pode confirmar, a filmagem foi feita apenas com drones.
Os drones permitem imagens belíssimas, é verdade, mas ele não foi escolhido como recurso técnico para a filmagem só por isso. Ele proporciona maior segurança e isolamento social para a equipe? Sim. Mas ele também tem um terceiro papel neste vídeo, um papel artístico.
A impessoalidade do drone fala. Em um determinado momento da coreografia vemos um bailarino dançando em frente a um espelho. Como jornalista que sou, procuro pelo reflexo da câmera. É muito difícil filmar em ambientes com espelhos sem que o cinegrafista seja refletido e apareça involuntariamente na filmagem. Mas mesmo quando estamos olhando diretamente para o espelho, não vemos câmera alguma.
O parceiro da valsa, a câmera que dança ao redor dos bailarinos, não está ali. Nós não estamos ali, não de verdade. Cada um dos bailarinos dança a mesma coreografia, em sincronia perfeita, porém isolados, sem se ver, sem se sentir. E você, pelo olhar da câmera, dança com eles, se integra na coreografia.
Você que, de fato, está dançando sua própria Valsa de Apartamento há um ano. Limpando a casa, procurando novas posições para os móveis, mudando pela terceira vez a sua mesa de trabalho numa tentativa vã de trocar de cenário.
A pandemia cobrou seu preço também no nosso cenário artístico. Estamos cansados, estamos sobrevivendo mais do que vivendo. Apesar de todas as dificuldades, ainda assim foi um momento de oportunidades e descobertas. Estas duas pílulas de dança feitas pelo Balé Teatro Guaíra mostram como a arte consegue se reinventar para ainda ecoar o momento em que vivemos. Em casa, em nossas mesas, interagindo por câmeras. Esta valsa que estamos dançando, cada um, isolados em nossos próprios apartamentos.
A última imagem que o vídeo nos entrega é uma imagem em movimento. A bailarina dançando no terraço do prédio. A câmera se afasta, sobrevoa a praça e nos leva de volta ao Teatro Guaíra. Fechado. Como gostaríamos que fosse possível que esta valsa ocorresse dentro daquele teatro, que a plateia estivesse lotada novamente. Que pudéssemos estar presentes em carne e osso, sentados nas cadeiras de veludo. Por enquanto, vamos ter que nos contentar com esse passeio de drone e com a mediação das câmeras. Seguimos com nossas valsas de apartamento.
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