Com a inabalável decisão de não voltar nunca mais

Desde que eu comecei a ler Proust, tenho lembrado das coisas mais inusitadas — e, em grande parte das vezes, repensado e entendido melhor todas elas. E acho que tenho olhado de outra maneira para a vida, para a literatura (a bela relação entre elas).

E hoje eu tive mais um desses estalos.

Eu estava fazendo café de manhã e, de algum lugar não muito longínquo, um cheiro de comida invadiu a cozinha. Lasanha. Eu tive certeza de que aquele cheiro só poderia ser de lasanha. E então, sem que eu quisesse ou esperasse, minha memória involuntária falou mais alto e a imagem do meu avô paterno veio à mente. Isso porque ele fazia a melhor lasanha do mundo aos domingos — não esquecendo, é claro, do molho verde que ele levava aos churrascos lá em casa.

Como disse, acho que ando propensa a essas coisas por estar lendo Proust. Não sou muito dada a pensar no meu avô. Aliás, sequer éramos pessoas muito próximas — eu, na minha adolescência, achava meu avô muito duro, rude até. Ou, se quiserem, não conseguia entendê-lo, entrar na sua cabeça, me colocar no seu lugar (a famosa empatia).

A seguir, nova surpresa: associações. Esses dias foi aniversário do Gabo, não foi? Meu avô adorava Gabriel García Márquez. Inclusive, foi ele, em 2008, me vendo sofrer por ter levado um belo de um pé na bunda, que veio, com os chinelos arrastando, depois de ter feito um cigarro (“o que faz mal é o papel”), e me emprestou O amor nos tempos do cólera. Foi esse livro o responsável por me ensinar algo que Alice Walker também me recordaria esses dias: nosso coração tem que ter sabedoria pra aceitar as coisas que a gente não pode mudar.

O amor nos tempos do cólera foi uma das minhas primeiras fixações literárias. A meu ver, poucos autores sabem contar uma boa história de amor. Mas Gabo, além de todas outras qualidades, sabe contar as melhores histórias de amor.

Gostei muito do livro e risquei ele inteiro. Resultado: não queria devolvê-lo. Meu avô, insistente, ligava lá em casa perguntando sobre o livro e eu mentia que ainda não tinha terminado, que ainda queria reler algumas passagens. Até que um dia ele apareceu na porta de casa pedindo o livro de volta. E lá se foi ele com o livro, me deixando com o coração apertado. Eu não entendi aquela atitude, assim como não compreendia meu avô quase que por inteiro.

O tempo passou. Meu avô se foi em 2013, apenas algumas semanas depois de eu ter entrado na faculdade. Depois que ele se foi, minha avó (talvez em um daqueles atos extremos, na tentativa de esquecer) me deu todos os livros guardados na biblioteca da sua casa. Florentino Ariza voltava pra mim, com todas minhas anotações, com seus sofrimentos e aquela cena inesquecível onde toca ainda uma vez a balada do sofrido amor — “com a inabalável decisão de não voltar nunca mais”.

Foi só dois anos depois da morte do meu avô que eu comecei a ler Cem anos de solidão — o Gabo preferido de meu avô. A edição está bem surrada, a capa recolocada com um durex. Dentro, uma genealogia dos Buendía feita pela minha avó. “É sempre muito útil”, ela diz. Enquanto eu lia as primeiras páginas de Cem anos de solidão, um emoção estranha tomou conta de mim. Chorei no começo, na execução de Aureliano, com as borboletas amarelas voando enquanto o casal se amava.

Só hoje, com esse cheiro de lasanha, é que eu entendi o porquê de ficar tão emotiva lendo Cem anos de solidão, ou ao ver o trailer do documentário sobre a vida de Gabo, ou há duas semanas atrás, quando meu pai, para puxar assunto, perguntou se eu já tinha lido Cem anos de solidão.

Só então eu entendi o meu avô.

Apesar de fechado, o olhar dele sempre foi brando. É uma das boas lembranças que eu guardo. E talvez ele, depois de sofrer na vida, depois de perder um filho, quisesse, na verdade, me ensinar uma lição. Talvez quisesse que eu lesse O amor nos tempos do cólera e me apegasse ao livro para, então, tirar ele de mim. Para que eu entendesse, como Florentino Ariza, que, às vezes, as coisas e as pessoas que a gente ama simplesmente vão embora. Que não adianta bater o pé. Resta tentar entender, tirar algo bom da experiência — por mais dolorosa que ela seja. Não estar mais com o livro, mas fazer de tudo para manter a lição dele viva dentro de você.

Depois de todos esses anos, tenho os dois livros aqui comigo, para eu ler quando quiser. E ambos sempre me ensinam coisas novas — mesmo que eu só passe os olhos pelas partes grifadas. Mas são, acima de tudo, o canal para eu entender aquela figura estranha do meu avô e o que ele poderia estar querendo me dizer, com os olhos, enquanto fazia algumas coisas que eu, na minha ingenuidade, considerava duras demais.

Incrível como a gente pode conhecer as pessoas lendo os livros preferidos delas

Por Luisa Coquemala
30/05/2021 15h06