Briga de Vizinho (eleição de síndico)

Foto: Divulgação

Essa semana, briguei feio com uma vizinha.

Sou partidário da ideia de que ninguém convence ninguém de nada. Depois de anos me desgastando em acaloradas – e inúteis – discussões no grupo de e-mails da faculdade, depois de anos trabalhando numa profissão em que o amor ao debate é um paradigma retórico, depois de anos como fiel de uma religião em que o proselitismo é requisito básico para a salvação, aprendi a escolher minhas batalhas (sobraram pouquíssimas).

Talvez seja mais cinismo que zen, mas, se começarmos a divergir muito seriamente sobre um assunto, quase qualquer assunto, o mais provável é que eu meta um sorriso amável na cara, incline o rosto para o lado e concorde com tudo o que você estiver dizendo. Podem ser as piores sandices, mas eu estarei lá, balançando a cabeça para cima e para baixo à maneira de um recepcionista de spa. No máximo, se gosto muito de você, precipito o fim da contenda com meu já clássico “ok, ok, concordemos em discordar”.

Essa semana, no entanto, rompi com essa máxima pessoal e tentei convencer minha vizinha de que ela estava errada. Um erro (meu).

Pelos últimos tempos, tivemos eleição para síndico do prédio. Parte dos condôminos, eu incluso, estava bem insatisfeita com a gestão vigente. Com o fito de reequilibrar as contas do condomínio, os funcionários tiveram a carga horária de trabalho aumentada e uma série de benefícios cortados (isso quando não foram de pronto demitidos). Babás ou empregadas domésticas foram proibidas de utilizar o elevador, agora considerado um luxo. Deveriam sempre subir e descer pelas escadas.

O uso da piscina foi destinado exclusivamente a pessoas brancas, e, fomentados por cartilhas pregadas no flanelógrafo da portaria, alguns moradores voltaram a olhar torto para mim e meu namorado, sobretudo se andávamos de mãos dadas. Multas condominiais foram aplicadas de maneira sumária, sem direito de defesa, agora considerado incitação ao mimimi (punível, ela mesma, com novas multas). Para salvaguarda patrimonial, os moradores foram estimulados a tirar as licenças de posse e porte de tasers e nunchakus, e, para que todos despertassem na hora certa, ao cantar do galo se substituiu a reprodução do hino nacional em paredões de som.

Até que chegou a eleição, e um novo síndico, que tinha ocupado o cargo anos antes, foi o escolhido. Entendo quem não goste tanto dele assim, entendo de verdade, até porque, e isso eu jamais poderia nem quereria negar, erros graves foram cometidos no passado. Mas, a meu ver, o síndico antigo era muito, muito – muito – pior. E, embora fosse uma tremenda de uma ingenuidade julgar que todos pensassem como eu, achei que, de todos, pelo menos a minha vizinha concordaria comigo.

Achei isso porque sempre fomos muito próximos. No dia em que me mudei para o prédio, me recebeu com um bolo confeitado de açúcar e afeto. Me acolheu quando estive triste, me deu remédio quando doente, me levou para passear quando solitário, cozinhou para mim quando tive fome. Mais de uma vez faxinou minha casa, cuidou dos meus gatos e aguou minhas plantas. Chegou até mesmo a trocar minha roupa, me dar banho e me colocar para dormir – como se fosse, imaginem só vocês, alguém da minha própria família.

Depois que o novo síndico foi eleito, se iniciou um levante para questionar a legitimidade do processo eleitoral – levante capitaneado pelo síndico perdedor, que agora espalhava aos quatro ventos que o sistema de votação usado pelo condomínio era uma fraude (não obstante ele tenha sido eleito por meio do mesmíssimo sistema). Diante das acusações, o software foi auditado pela empresa desenvolvedora, por entidades independentes e até por organismos internacionais. Nada de estranho foi encontrado. Muito ao contrário, aliás: constatou-se que a segurança do mecanismo era sólida. As eleições tinham sido legítimas.

Inconformados, os perdedores organizaram uma manifestação pacífica. Primeiro expulsaram o porteiro aos socos e tomaram a portaria. Depois, marcharam até o hall de entrada do prédio, esmigalharam vasos a marteladas e tesouraram os estofados das poltronas. Quebraram ao meio as mesas do salão de festas, demoliram o parquinho das crianças e tocaram fogo na horta coletiva. Destruíram os aparelhos da academia, inundaram os banheiros e defecaram na piscina.

Minha vizinha estava em outra cidade e, por isso, não pôde participar da tal manifestação pacífica. Apesar disso, celebrou a coragem e o ímpeto dos que pensavam como ela, verdadeiros heróis. Foi aí que, sem aguentar mais, precisei me engajar na discussão.

Expliquei que atos violentos como aqueles só almejavam por causar terror gratuito e que todos teríamos que pagar a conta dos estragos. Ela discordou, mas, quando os colegas foram punidos com multas condominiais sumárias (aquelas mesmas defendidas por seu candidato), mudou o discurso. Segundo ela, agora havia provas irrefutáveis de que, na verdade, os vândalos eram correligionários do novo síndico, que tinham se infiltrado na intenção de minar a reputação da tal manifestação pacífica. Perguntei se ela realmente acreditava nisso e lhe mostrei dezenas de vídeos que comprovavam o contrário (alguns, aliás, gravados pelos próprios arruaceiros). Ela refutou todos, afirmou que eram fake news. Insistia que as eleições tinham sido fraudadas e que, se todos os países e toda a imprensa internacional, digo, se todos os condomínios do bairro reconheciam a vitória do novo síndico, era porque eram todos comunistas interessados em acabar com o país para depois invadi-lo, digo, eram todos especuladores imobiliários interessados em aumentar o valor dos aluguéis e das taxas de condomínio.

Nesse momento, entendi, entre triste e estupefato, que não estávamos mais no domínio da racionalidade, mas no da paixão – essa vizinha de porta do delírio. Não havia mais o que argumentar, então desisti. Por um lado, uma pena, mas, por outro, melhor assim: menos uma batalha a se batalhar. Ando cansado demais.

Por Pedro Jucá
17/01/2023 14h40