“Doutor Sono” acerta ao não ignorar o legado do clássico “O Iluminado”

Lançado em 1980, “O Iluminado”, de Stanley Kubrick, conseguiu superar as barreiras tradicionalmente impostas ao Terror no cinema, sagrando-se não apenas como um clássico do gênero, mas como uma importante adição à filmografia de um dos mais relevantes cineastas do século 21. Baseado na obra homônima de Stephen King, “O Iluminado” ganhou uma continuação literária em 2013, e em 2018 fez uma breve visita às telonas, cortesia de Steven Spielberg e seu “Jogador Nº 1”. Agora, em meio a um infindável ciclo de nostalgia, “Doutor Sono” chega aos cinemas com muito a contar – e a provar.

Dirigido e roteirizado por Mike Flanagan, “Doutor Sono” acompanha Danny Torrance (Ewan McGregor) anos depois dos acontecimentos no Hotel Overlook. Ainda atormentado pelo trauma que sofreu quando criança e pelas visões que seus dons proporcionam, Danny batalha também o vício em álcool, e encontra relativa tranquilidade trabalhando como enfermeiro em uma pequena cidade. Entretanto, esta paz é destruída quando ele conhece Abra (Kyliegh Curran), uma poderosa adolescente que se tornou alvo de um grupo que se autodenomina O Verdadeiro Nó, liderado por Rose Cartola (Rebecca Ferguson). O Verdadeiro Nó se alimenta dos poderes – ou do “Brilho” – de inocentes, e, apesar de unir forças com Abra, Danny é obrigado a recorrer a um antigo inimigo para enfrentar esta nova ameaça.

Aproveitando as diversas ferramentas que o Terror oferece para abordar questões como traumas e arrependimentos, “Doutor Sono” investe significativa parte de suas 2h31min no desenvolvimento de seu protagonista e dos fantasmas que o perseguem. Danny, que viveu horrores inimagináveis quando criança, se torna um problemático adulto que aprende a lidar com as assombrações que o seguem: algumas se tornam suas companheiras, outras são derrotadas e enxotadas para as margens de sua consciência, e há ainda aquelas que são evitadas a todo custo. Porém, são os espectros que mais tememos que nos separam da paz que buscamos, e o mesmo é verdade para Danny.

Com o impossível desafio de suceder “O Iluminado”, “Doutor Sono” toma a acertada decisão de não ignorar o legado deste, transformando-o em um de seus elementos mais fortes. Flanagan não utiliza excertos da obra de Kubrick, preferindo reproduzir as sequências necessárias para o desenvolvimento de sua própria criação e, eventualmente, homenagear o clássico. Isso significa que “Doutor Sono” exige o conhecimento prévio de “O Iluminado” para absorção completa da experiência fílmica. Um efeito colateral do destaque dado ao longa de 80 é a desvalorização das demais storylines do filme. A partir do momento em “Doutor Sono” trabalha com referências diretas ao seu capítulo anterior, a narrativa sofre uma fissão, e por mais interessantes que Abra ou Rose possam ter se apresentado até ali, a atração exercida pelo passado de Danny é maior que qualquer força psíquica.

Resistindo à tentação hollywoodiana de utilizar computação gráfica para produzir atuações impossíveis, “Doutor Sono” oferece performances fortes, uma considerável dose de ação, e algumas surpresas que prometem agradar os fãs do original. Mas, se “Doutor Sono” terá fôlego para conquistar um lugar ao lado de “O Iluminado”, só o tempo dirá.

Crítica por Luciana Santos, especial para o Curitiba Cult.

Por Curitiba Cult
07/11/2019 14h26