Shakespeare no Festival de Curitiba: confira nossa entrevista exclusiva com Thiago Lacerda

Acompanhando nosso site, você deve ter notado que temos produzido uma série de matérias especiais relacionadas ao Festival de Curitiba. Já falamos sobre a Grécia Antiga, passamos pelo teatro norte-americano e fomos até outros projetos que envolvem o diálogo de escolas teatrais. Hoje, temos Shakespeare. Acho que ele dispensa apresentações.

Conversamos com Thiago Lacerda, protagonista de duas peças do inglês que, essencialmente, trata da condição humana. Numa delas, Macbeth, ele é o homem de confiança do rei que, por causa de uma suposta profecia, arquitetou, junto com sua mulher (Lady Macbeth, interpretada, na montagem, por Giulia Gam), a morte do monarca e a ascensão ao trono. Em outra, Medida por medida, é o duque que luta contra a desmoralização da sociedade em um mundo transformado em bordel. “Não sei qual é o impacto, o que significa eu estar fazendo [os papéis]. Acho que é mais uma interpretação de quem assiste, da plateia”.

Thiago passou por um período intenso de estudos. “A preparação foi longa. Foram 11 semanas de investigação. Mais, até, pois eu comecei a trabalhar com o texto antes”, se referindo à dedicação exclusiva às peças. Segundo o ator, o trabalho da equipe focou em desvendar o texto de Shakespeare. “Quando começamos a ensaiar, Ronaldo [diretor da peça] disse que, para ele, Macbeth é a história de um homem bom que se corrompe, que se transforma num animal”.

Sabe-se que a recepção do público é fundamental, e Thiago disse que tudo o que é ensaiado passa por uma transformação no momento em que ocorre o espetáculo. “Não conhecia o texto de Medida por medida, mas Macbeth sim, era minha peça favorita. Eu me lembro de chegar com minha história [para compor o personagem da tragédia]. Tratava-se de uma história sobre o feminino, sobre a capacidade de persuasão do feminino. Permeabilidade da energia natural do feminino”.

Thiago Lacerda e Giulia Gam em Shakespeare: Macbeth | Foto: João Caldas Francisco

SÃO IGUAIS O BELO E O FEIO

Há, em Macbeth, três bruxas, figuras andróginas que, através de uma suposta profecia, sugerem que o protagonista se tornaria rei. O curso de ações dele se inicia a partir deste ponto. “Três é um número importante para o Shakespeare, e elas são figuras indefiníveis, que podem ser fruto de uma circunstância. Trata-se de uma experiência metafísica que não passa necessariamente pelo gênero”, disse o ator. “Com relação à Lady Macbeth, não haveria essa peça sem ela”.

Considerada por ele um catalisador no desenrolar da história, essa personagem é quem convence o marido a assassinar o monarca para quem ele trabalha. “Ele não mata o rei por causa dela, mas só por causa dela é que toma a decisão. Ele provavelmente não faria o que deflagra o caos no espetáculo se não fosse ela. Ela é tão fundamental que eu brinco que, se tivesse mais duas cenas dela, a peça se chamaria Lady Macbeth”.

Pensar que uma peça escrita por volta do ano de 1603/1607 aborda temas tão atuais é no mínimo curioso, mas Lacerda afirma que não é tanto a contemporaneidade do texto que o assusta, mas a abordagem de experiências metafísicas (bruxas, feitiços etc.) numa época em que a Inquisição católica atuava fortemente — ainda hoje, trata-se de um tema abordado, segundo ele, com muito preconceito. “Como era esse ambiente em ebulição religiosa da Inglaterra do século 17? É impressionante a capacidade revolucionária do Shakespeare. O que mais me impressiona é como o ser humano dá voltas atrás do próprio rabo, Shakespeare sabia disso. A gente não aprende. Continuamos rodando a mesma roda de centenas de anos atrás”.

Shakespeare: Macbeth | Foto: Joao Caldas Francisco

Shakespeare: Macbeth | Foto: João Caldas Francisco

Nisso, Thiago já emendou o assunto de Medida por medida, que traz à discussão o assédio sexual, apresentando, também, a proposta da peça: “Há uma cena em que o Duque, um homem reto, fundamentalista, maravilhoso, que acredita que é capaz de transformar o mundo através de sua lisura moral, de sua ética inabalável, se descobre como homem sentindo uma ereção por uma freira. Se descobre não como um arquétipo, como um paladino da justiça, mas como homem”.

E o que significa ser homem? “Ser frágil, contraditório, complexo“. Detalhando o texto, o ator vai além. “Esse homem decide dar voz a isso. Poderia simplesmente se reprimir, e a peça seria outra”. Optando por ceder, o personagem vai atrás da freira. “Ele exerce o poder de uma maneira baixa, vil, como a gente vê nas grandes corporações”, citando ainda, como exemplo casos de assédio sofridos por profissionais do ramo de atuação. “Recentemente tivemos na internet esse movimento do Meu primeiro assédio, e aqueles relatos me chocavam tanto! É humilhante a condição da mulher numa sociedade como a nossa, nessa cultura machista. Nós, homens, não imaginamos o que significa isso”.

“Enquanto eu ensaiava, as pessoas estavam discutindo opressão do masculino sobre o feminino. O peito pesou demais. É um prazer fazer essa cena. Quanto mais grotesco, quanto mais sujo, mais patético, mais as pessoas se divertem. Tenho certeza que os homens se sentem humilhados, sentem vergonha com essa cena, e de que as mulheres têm nojo, pois elas vivem isso no dia a dia delas. Às vezes sinto que a plateia ri disso porque é uma coisa patética ver um homem rastejando atrás de uma mulher e ao mesmo tempo a oprimir”.

No que admite ser uma análise superficial, Lacerda disse também que acredita ser da natureza humana o conflito por causa de sua configuração de grupo. “Eu acredito no ser humano individualmente, nas potencialidades individuais, na capacidade que o homem tem de ser belo, forte, corajoso, revolucionário, de se engajar, se posicionar, promover o altruísmo, olhar para o próximo. Juntou mais de três…!”

repertorio

PILAR DE SUSTENTAÇÃO DO PENSAMENTO CONTEMPORÂNEO

“É inadmissível que as pessoas joguem mísseis umas nas outras, por exemplo, é impensável. Por outro lado, não há uma possibilidade real de que isso não aconteça mais. Vai acontecer sempre! Talvez esse seja o nosso papel, autodestruição. Sermos reguladores de nós mesmos através da boçalidade, da autorreverência, do egoísmo. Trata-se de uma necessidade enquanto espécie, de se atacar, se mutilar”, disse.

Já no final da entrevista, o ator afirmou que, para ele, Shakespeare inaugurou o pensamento do homem moderno, a maneira como, hoje, avaliamos as questões humanas. “É o fundador da literatura ocidental moderna, da maneira como avaliamos o machismo, a ética, a ambição, o amor, a natureza. São os pilares de sustentação. Os maiores pensadores modernos só surgiram por causa de Shakespeare, ou principalmente por causa dele. Nietzsche, Jung, Freud, Brecht, Camus, Sartre… O homem construído sobre a pedra fundamental do pensamento humano moderno necessariamente passa por Shakespeare”.

Eu fui à peça Macbeth e atesto: tem tanta qualidade quanto esse bate-papo descompromissado entre um café e outro. Continue nos acompanhando em mais matérias especiais.

Por Alex Franco
27/03/2016 22h20